Impactos da Covid-19 no (des)emprego doméstico | o que já podemos ver?

Em 28 de maio o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou os resultados mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad-C Mensal). Esses resultados são mensais, mas se referem a trimestres móveis (veja na Figura 1 como funciona). Mas o que é isso? A Pnad-C Mensal apresenta resultados de uma pesquisa amostral, ou seja, que sorteia um conjunto de pessoas seguindo métodos estatísticos para que as respostas desse conjunto de pessoas possam representar a população brasileira. Grosso modo, dependendo de algumas características da população (e não necessariamente do seu tamanho) essa amostra será maior ou menor. Assim, para analisar os dados dessa pesquisa, precisa-se esperar acumular dados de três em três meses para que a amostra seja representativa. Os trimestres móveis são os dados que representam as características da população a cada conjunto de três meses e esse grupo de três meses vai mudando conforme se adicionam os dados de mais um novo mês.

Ilustração esquemática da composição dos trimestres móveis

Diante dessas características da pesquisa, é possível analisar a contratação de trabalhadores domésticos durante a pandemia da Covid-19 apenas para o conjunto agregado do Brasil e não regionalmente ou por estados. A partir da média mensal do período “fevereiro-março-abril” de 2020 foi possível considerar que os efeitos das medidas de distanciamento social decorrentes da Covid-19 estejam compreendidos em, pelo menos, 45 dias (segunda quinzena de março e o mês de abril de 2020) desse período de resultados divulgados da Pnad-C e confirmam algumas das hipóteses discutidas em textos anteriores do ONAS de que os trabalhadores domésticos estão entre os mais afetados pelos impactos da Covid-19 no mercado de trabalho.

De acordo com o Gráfico 1, o emprego doméstico é uma ocupação com elevado grau de informalidade e tendência crescente desse tipo de precarização, isto porque o emprego doméstico formalizado diminui os vínculos ao longo dos anos em análise. O total de trabalhadores domésticos com carteira assinada (linha laranja) somente teve um pequeno crescimento em jul-ago-set de 2015, logo após a aprovação da PEC das Domésticas (PEC150 de 1º de junho de 2015), legislação que aproximou os diretos dos trabalhadores domésticos aos demais trabalhadores brasileiros. Com isso, o máximo de formalização alcançado pela categoria foi de 35% em jan-fev-mar de 2016, resultado também da regulamentação do Simples Doméstico, que unificou os pagamentos dos novos benefícios devidos aos domésticos pelos empregadores.

Contudo, a formalização voltou a tendência de declínio, fato associado ao baixo crescimento econômico do país e a Reforma Trabalhista de 2017, que permitiu novamente a flexibilização das relações de trabalho e novas formas de contratação. Consequentemente, o grupo dos trabalhadores domésticos sem carteira assinada (linha cinza), os quais incluem diaristas, cresceu e absorveu trabalhadores de outros setores, representando cerca de 70% de todos os trabalhadores domésticos. Com o aumento do desemprego, rotatividade e precarização do trabalho formalizado, milhares de mulheres que ficaram desempregadas nesse período passaram a oferecer o serviço doméstico como alternativa para receber algum provento. Por isso, o total de trabalhadores domésticos, que em janeiro de 2015 absorvia aproximadamente 6 milhões, alcançou a marca de 6,3 milhões em dezembro de 2017, o que pode ser visto pela linha azul.

Gráfico 1: Total de trabalhadores domésticos (Mil pessoas) no Brasil, com carteira e sem carteira assinada, considerando a posição na ocupação e categoria do emprego no trabalho principal, de dez-jan-fev de 2015 a fev-mar-abr de 2020. | Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua mensal

Marcado por oscilações no volume total de trabalhadores domésticos, mas girando em torno de 6 milhões de vagas ocupadas no período em estudo, nitidamente essa realidade modificou-se a partir do início de 2020. O total de empregados domésticos que no final do ano de 2019 era de 6,26 milhões começa a declinar e atinge um contingente de 5,5 milhões de trabalhadores na média mensal do trimestre fev-mar-abr de 2020, como resultante da redução de 736 mil trabalhadores domésticos, implicando numa queda de 11,8%. E como esperado, esse declínio foi maior entre os sem carteira assinada, com redução de 12,6%, os quais já não tinham nenhum direito trabalhista assegurado. E entre os trabalhadores com carteira, a queda foi de 9,6%.

É preciso deixar claro que a diminuição no volume total de trabalhadores domésticos já acontecia no contexto pré-pandemia, sendo consequência principalmente de dois fatores: o primeiro diz respeito a crise política e econômica que o país vinha enfrentando, mas se agravou significativamente nos meses iniciais de 2020, com a continuidade de baixo crescimento do PIB, queda nos investimentos público e privado e desvalorização do Real. E o segundo refere-se ao contexto epidemiológico mundial, com a pandemia da Covid-19, que está ocasionando retração econômica mundial sem precedentes, com exceção da crise de 1929, com impactos no emprego e renda.

Diante desse contexto de aumento do desemprego que afeta distintas classes sociais do país reduzindo a renda de muitas famílias brasileiras (sobretudo a classe média que, em geral, contrata trabalhadores domésticos) aliada a necessidade de distanciamento social para conter o avanço de casos de Covid-19, milhares de patrões suspenderam ou demitiram os seus trabalhadores domésticos (mensalista ou diarista; formal ou informal). Através do gráfico 2 é possível constatar e com mais detalhes os efeitos da pandemia sobre esse grupo de trabalhadores. Antes dos decretos de distanciamento social por parte dos governadores, o país já apresentava tendência de perda de vínculos: na comparação da média mensal do trimestre dez-jan-fev de 2020 com a média mensal de nov-dez-jan de 2019 já se observa uma queda de 51mil postos de trabalhos, sendo 21 mil formais e 24 mil informais. Contudo, durante o distanciamento, a redução dos vínculos foi mais expressiva, pois 144 mil trabalhadores domésticos formais e 541 mil informais deixaram de trabalhar nessa ocupação. Assim, esses resultados evidenciam que no primeiro trimestre de 2020, 736 mil trabalhadores domésticos perderam seus empregos.

Para amenizar o quadro de vulnerabilidade socioeconômica, os trabalhadores domésticos formais que tiveram o contrato de trabalho temporariamente suspenso ou redução na jornada de trabalho e salário passaram a ter direito a receber o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e Renda (BEm), possivelmente a única fonte de renda no contexto de Covid-19. Para os informais, a única alternativa foi o auxílio emergencial do governo federal, cujas cotas/parcelas podem variar de R$ 600,00 a R$ 1.800,00 por domicílio, dependendo dos critérios de elegibilidade. Mas a operacionalização de pagamento continua com problemas, muitos pedidos permanecem em análise, outros sequer conseguiram solicitar, devido ao precário acesso à internet ou as filas nas agências bancárias/lotéricas (como já analisado pelo ONAS). Além disso, de acordo com o Tribunal de Contas da União, cerca de 8,1 milhões de auxílios podem ter sido pagos indevidamente a quem não tem direito, como por exemplo, a jovens militares. Enquanto cerca de 2,3 milhões de pessoas que precisam e fazem jus a esse montante, ainda não tiveram acesso.

Gráfico 2: Redução do número de trabalhadores domésticos (Mil pessoas) com carteira e sem carteira assinada, considerando a posição na ocupação e categoria do emprego no trabalho principal, por períodos do ano de 2020. | Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua mensal

Considerando que 92,4% dos empregados domésticos são mulheres e que provavelmente essa proporção se mantém entre os desempregados, podemos inferir que cerca de 680 mil trabalhadoras domésticas estão desempregadas no país. Esses dados confirmam o que foi apontado em estudos do ONAS e pela ONU Mulheres, de que as empregadas domésticas representam um grupo que seria bastante afetado pela crise econômica que acompanha a pandemia mundial. Essa realidade tende a agravar as desigualdades e as diversas vulnerabilidades que essas mulheres e suas famílias já enfrentavam.

O distanciamento social ainda é a única forma de evitar o rápido espraiamento da doença, salvar vidas e postergar e/ou impedir o colapso do sistema de saúde. Portanto, essa medida ainda deve permanecer em alguns estados brasileiros. Contudo, em outros estados o trabalho doméstico foi decretado como atividade essencial o que, por um lado, pode manter o emprego dessas mulheres, mas por outro, as expõem ao maior risco de contágio, pois a maioria depende de transporte público para chegar ao trabalho e se expõem ao convívio com os patrões e suas redes. Nesse sentido, a alternativa que os sindicatos dos trabalhadores domésticos defendem é a manutenção das relações de trabalho com os trabalhadores permanecendo em suas casas, com atenção especial às diaristas que precisam ter o seu rendimento mantido pelos patrões, já que não tem nenhum outro direito trabalhista assegurado.

Contudo, essa alternativa não tem tido adesão desejável. Assim, com a futura divulgação da informação do trimestre mar-abr-mai 2020, provavelmente encontraremos um quadro ainda mais preocupante, pois considera os três meses em que o distanciamento social se fez presente nos estados. Com isso, pode-se esperar a revelação de que as trabalhadoras domésticas continuarão sendo muito afetadas pela pandemia, seja do ponto de vista econômico, pelo aumento do desemprego, informalidade e precarização, ou pela situação sanitária.

Luana Junqueira Dias Myrrha – Demógrafa, professora do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais (DDCA) e do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Silvana Nunes de Queiroz – Demógrafa, professora do Departamento de Economia da Universidade Regional do Cariri (URCA) e do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Priscila de Souza Silva – Doutoranda em demografia do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Confira essa e outras análises demográficas também no ONAS-Covid19 [Observatório do Nordeste para Análise Sociodemográfica da Covid-19] https://demografiaufrn.net/onas-covid19

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