As empregadas domésticas informais no Nordeste no contexto da Covid-19: vulnerabilidades acumuladas de um passado distante

Em publicação anterior, com base nas informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) referente ao quarto trimestre do ano de 2019, demostramos que no Nordeste 1,1 milhões de empregadas domésticas são informais: sendo 72,8% mensalistas sem carteira assinada e que recebem em média R$ 476,30. Outras 27,2% são diaristas que percebem uma remuneração média de R$ 536,06. Nessa nova analise detalharemos as características dessas mais de 1 milhão de mulheres que experimentam uma precarização laboral no vínculo empregatício e nas remunerações. Realidade que as deixam em situação de vulnerabilidade socioeconômica, principalmente durante a pandemia da Covid-19, momento que exige o distanciamento social como a única medida eficaz no combate à sua expansão.

Dito isso, muitas empregadas domésticas ficam expostas ao risco de ser dispensadas do trabalho, pois 83,2% vivenciam a ausência de direitos trabalhistas, sem acesso a algum tipo de indenização ou seguro-desemprego. Ou seja, sem obrigações trabalhistas, os empregadores não têm nenhum constrangimento monetário para dispensar suas domésticas. Sobressaindo, portanto, a preocupação social ou moral do empregador diante da situação de sobrevivência da sua funcionária.

Nesse momento, a única alternativa de renda às empregadas domésticas seria o auxílio emergencial do governo federal, que pode variar de R$ 600,00 a R$ 1.800,00 por domicílio, dependendo de alguns condicionantes, durante 3 meses. Contudo, o acesso a esse benefício tem sido moroso e complexo, devido ao expressivo contingente de pessoas que nunca teve conta em banco e precisa fazer o cadastro on-line na Caixa Econômica Federal. Diante dessa alta demanda, o sistema criado pelo governo federal tem apresentado falhas e inconsistências que obrigam os beneficiários a ir pessoalmente as agências para resolver tais pendências. E quando aptos para receber o auxílio emergencial, novamente enfrentam filas gigantescas para sacar o benefício, devido à escassez de redes bancárias no Nordeste, conforme apontado no estudo do ONAS-Covid19, contribuindo para elevar o risco de alto contágio da Covid-19 nas filas dos bancos.

Mas quem são essas mulheres no Nordeste? Quantas pessoas dependem de suas rendas? Em quais idades se concentram? Qual a raça/cor? O nível de escolaridade? Essas perguntas nos ajudam a traçar o perfil sociodemográfico dessas profissionais que estão em maior risco econômico durante esse momento atípico que estamos vivendo. De acordo com os dados do último trimestre de 2019 da PNAD, em quase todos os estados nordestinos, exceção Rio Grande do Norte (47,2%) e Piauí (48,4%), mais da metade das mulheres em empregos domésticos são as responsáveis pelo domicílio. Possivelmente são as principais provedoras do sustento da família (Gráfico 1). É no estado de Pernambuco que esse percentual é o mais elevado, onde 57,6% das empregadas domésticas informais se declararam as responsáveis pelos domicílios.

Gráfico 1 – Percentual de empregadas domésticas informais responsáveis pelo domicílio, segundo estados de residência – Região Nordeste, 4º trimestre de 2019. Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, PNAD-C (2019).

Tais resultados evidenciam a importância da renda dessas mulheres para suas famílias, que no Nordeste tem tamanho médio de 3,5 pessoas e em sua maioria são famílias formadas por casal e filhos (66,5%). Essa estatística permite estimar o total de pessoas residentes no NE que dependem da renda de uma empregada doméstica informal. São cerca de 4 milhões de pessoas que vivem em domicílios onde a renda da empregada doméstica informal contribui para sua sobrevivência. Esse montante corresponde a 7,0% da população total da região (57 milhões segundo estimativas do IBGE para 2019) e a ausência da renda dessas mulheres comprometeria o sustento de um total de pessoas que equivale a soma da população Recife e Fortaleza, por exemplo.

O Gráfico 2 evidencia que as empregadas domésticas informais se concentram nas idades acima de 35 anos. Por outro lado, uma em cada três domésticas informais têm mais de 45 anos, idades em que as comorbidades como doenças cardiovasculares, diabetes, doenças respiratórias e outras já são mais presentes. Nesse sentido, essas domésticas não são vulneráveis apenas economicamente, mas também nas condições de saúde dentro do contexto da pandemia da Covid-19. Como são pertencentes a classes sociais de menor poder aquisitivo, apresentam dificuldades de manter-se em isolamento social, pois as condições físicas dos seus domicílios são mais precárias, em bairros periféricos, com alta densidade demográfica, escassez de postos de saúde e de infraestrutura básica, como coleta de lixo, saneamento e falta ou dificuldades de acesso a água.

Gráfico 1 – Distribuição etária das empregadas domésticas informais – Região Nordeste, 4º trimestre de 2019. Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, PNAD-C (2019).

O emprego doméstico é umas das ocupações que carrega uma herança de relações sociais, culturais e econômicas remanescentes da escravidão. Fica evidente essa condição, quando percebemos que pretas e pardas somam mais de 80% das empregadas domésticas informais no Nordeste.

Gráfico 3 – Percentual de empregadas domésticas informais, segundo a raça/cor – Região Nordeste, 4º trimestre de 2019. Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, PNAD-C (2019).

Outra característica do emprego doméstico no Nordeste é a absorção de mulheres com baixa qualificação (Gráfico 4). Com exceção do trabalhador doméstico em atividades de cuidados com a pessoa idosa, que tem exigido uma formação um pouco mais qualificada, os demais afazeres domésticos não exigem muita qualificação do empregado. Consequentemente, é histórica a baixa escolaridade das mulheres que se inserem nessa ocupação, sendo muitas vezes a única opção de trabalho por não terem tido oportunidades ou condições de acesso à educação.

No Nordeste essa baixa qualificação é presente de forma significativa, uma vez que (Gráfico 4) mais da metade das empregadas domésticas informais não tem instrução ou apenas o ensino fundamental incompleto. Assim, somente 20% tem o ensino médio completo. Essa realidade é um fator complicador para acessarem outros postos de trabalho, reforçando a imobilidade ocupacional e social diante da condição de vulnerabilidade social. Cabe lembrar aqui que a concentração das empregadas domésticas em idades mais avançadas reflete períodos da história do país em que a universalização do ensino fundamental ainda era uma realidade distante. A redução significativa de empregadas domésticas no grupo de 15 a 24 anos reflete parte das políticas públicas que induziram um maior acesso ao ensino básico, entre outras, pelas condicionalidades dos programas de transferência de renda desenvolvidos e ampliados durante a década de 2000.

Gráfico 4 – Distribuição das empregadas domésticas informais, segundo o nível de instrução – Região Nordeste, 4º trimestre de 2019. Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, PNAD-C (2019).

Se os dados mostram que no momento pré-pandemia da Covid-19 a situação dessas mulheres já era extremamente vulnerável, as inúmeras transformações que o contexto atual nos coloca contribui significativamente para acirrar as desigualdades de gênero, racial e regional tão marcantes da sociedade brasileira. Diante de tantas vulnerabilidades que permeiam a vida das empregadas domésticas informais, o que pode ser feito para mitigar as consequências diretas e indiretas da Covid-19 na vida delas? O auxílio emergencial será suficiente para minimizar a perda da renda dessas famílias pelo tempo necessário? Será que todas que perderam o trabalho irão conseguir acessar o auxílio emergencial do governo? E no final de tudo, serão recontratadas pelos patrões? Essas questões nos fazem refletir sobre o futuro dessas mulheres e dos seus dependentes. São efeitos colaterais não considerados e que terão efeitos perversos e duradouros na nossa sociedade.

Luana Junqueira Dias Myrrha – Demógrafa, professora do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais (DDCA) e do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Silvana Nunes de Queiroz – Demógrafa, professora do Departamento de Economia da Universidade Regional do Cariri (URCA) e do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Priscila de Souza Silva – Doutoranda em demografia do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Luana Damasceno – Bolsista de Iniciação Científica, graduanda em Gestão de Políticas Públicas na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Confira essa e outras análises demográficas também no ONAS-Covid19 [Observatório do Nordeste para Análise Sociodemográfica da Covid-19] https://demografiaufrn.net/onas-covid19

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