Os primeiros casos confirmados de Covid-19 no Brasil foram nas classes sociais de maior poder aquisitivo, pois se deu entre aqueles que fizeram viagens internacionais. Contudo, a primeira morte registrada no estado do Rio de Janeiro, no dia 17 de março de 2020, foi de uma empregada doméstica que nunca viajou para o exterior. A senhora de 63 anos morava em Miguel Pereira, cidade localizada a 100 km do Rio de Janeiro. Ela trabalhava como empregada doméstica há mais de 20 anos para uma família residente no bairro do Leblon, na zona sul da capital fluminense. Ela teria se contaminado através da sua empregadora que havia retornado de uma viagem à Itália e, embora estivesse reclusa em seu apartamento, não havia dispensado os serviços de sua funcionária. Como esse caso, provavelmente outras tantas empregadas domésticas tenham sido as primeiras vítimas de classes sociais mais populares a serem contaminadas pela Covid-19 iniciando um ciclo de contaminação comunitária aos seus familiares, vizinhos e pelos locais onde passaram no trajeto trabalho-domicílio.
O risco que essa senhora vivenciou e culminou em sua morte não é diferente dos demais trabalhadores domésticos no Brasil que, assim como em grande parte do mundo, são majoritariamente mulheres. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD realizada pelo IBGE), no quarto trimestre do ano de 2019, as mulheres representavam 92,4% de um universo de cerca de 6,3 milhões de trabalhadores domésticos no Brasil. Além disso, elas correspondem a 14% de todas as mulheres ocupadas no país, no referido período. De acordo com estudo de Guerra (2017), são trabalhadoras contratadas por famílias com maior poder aquisitivo e onde o nível de renda familiar per capita é um fator determinante para contratação ou não, seja de diarista ou mensalista. E independente da demanda dos serviços domésticos, as famílias com maior renda permanecem contratando uma mensalista, mesmo depois da chamada PEC das domésticas (que deu maior garantias trabalhistas à profissão).
Os trabalhadores domésticos são considerados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) os mais expostos ao risco de contaminação pela Covid-19. Isso porque trabalham em contato direto com os empregadores e os seus familiares – atuando em diversas atividades como lavar talheres, roupas e cômodos, cozinhar, passar, cuidar de crianças e de idosos, dirigir, limpar piscina etc. – e, em sua maioria, dependem de transporte coletivo para ir ao trabalho.
As medidas de distanciamento social por parte dos governos iniciaram em meados de março de 2020 e o impacto dessa medida foi bastante significativo para os trabalhadores, com destaque para as empregadas domésticas. Diferentemente de grande parte das ocupações, o emprego doméstico registra elevado grau de informalidade. De acordo com os dados do último trimestre de 2019 (PNAD), no Brasil 73,3% das domésticas não tinham vínculo empregatício formalizado e no Nordeste esse percentual foi ainda maior, com 83,2%. Portanto, mais de 1 milhão de mulheres no Nordeste (Tabela 1) não têm garantias trabalhistas e, por isso, ficaram mais sujeitas a serem dispensadas durante o período do isolamento social sem indenização ou acesso ao seguro-desemprego.
Sendo assim, dependem de negociações informais com o empregador para manter parcial ou integralmente seus vencimentos em caso de dispensa do trabalho. A Tabela 1 evidencia que no Nordeste a precariedade da ocupação é ainda maior do que na média nacional. Além de apresentar maior grau de informalidade, as empregadas domésticas nordestinas recebem salários menores que a média brasileira independentemente da forma de contratação. As mensalistas sem carteira assinada (informais) recebem em média R$ 476,30. Esse grupo além de apresentar menores remunerações também possuem maior jornada de trabalho se comparado aos demais grupos (mensalistas com carteira e diaristas).

Quando se consideram os estados nordestinos, o grau de informalidade das empregadas domésticas varia de 75,3% a 89,3%, sendo o estado do Piauí com maior percentual de informalidade (90%) e Pernambuco o menor (Mapa 1). Interessante notar que em todos os estados da região, o grau de informalidade foi mais elevado do que a média nacional (73,3%).

Com relação ao salário médio das domésticas informais, também chama atenção ser abaixo da média nacional e bem abaixo do salário mínimo. Entre os estados do Nordeste, apesar de auferirem baixos proventos quando comparado ao país, o Rio Grande do Norte apresentou a maior remuneração média das domésticas informais na região (R$ 566,75) e, por outro lado, a Bahia figura com a menor remuneração (R$447,74), revelando as diferenças intrarregionais.

A precarização do emprego doméstico no Nordeste é consequência de alguns fatores. O primeiro é a herança escravista da ocupação na região que, em grande medida, até hoje carregam os resquícios de relações de trabalho patriarcais e personalistas. O cuidado da casa, ou melhor, casa-grande, crianças e idosos geralmente eram feitos pelas mulheres negras, escravas de suas sinhás. Mesmo após a abolição da escravatura, as mulheres “livres” conseguiam oferecer serviços domésticos em troca de formas de remuneração que, muitas vezes, se resumia em alimentação. Além disso, os estados nordestinos experimentaram a escravidão por mais tempo, já que a ocupação do país teve início na Bahia, onde justamente se evidencia a maior precarização ou desvalorização do trabalho assalariado das domésticas, conforme aponta o mapa 2. Outros fatores que influenciam são as desigualdades entre as regiões, onde o Nordeste permanece com o baixo desenvolvimento socioeconômico, em que se destaca desvalorização da mão-de-obra, em especial o trabalho doméstico, através de baixos salários, quando comparado ao Sudeste do Brasil.
Nesse momento ainda não há dados disponíveis que permitam identificar os impactos da pandemia no mercado de trabalho formal ou informal. Contudo, uma pesquisa do Instituto Locomotiva, realizada entre os dias 14 e 15 de abril, dá uma direção do que vem ocorrendo no país ao divulgar os resultados das entrevistas por telefone, a partir de uma amostra de 1.131 pessoas, em cidades de todos os estados da federação. Os resultados evidenciam que 39% dos empregadores de diaristas dispensaram os serviços sem manter a remuneração das mesmas e 13% dos empregadores de domésticas formalizadas suspenderam o contrato. Essa realidade tem dificultado o sustento das famílias das diaristas que repentinamente perderam suas rendas que custeavam o básico.
Por outro lado, esse mesmo percentual de empregadores de diaristas (39%) e 48% dos patrões das empregadas domésticas formalizadas estão mantendo o pagamento de suas funcionárias para que possam ficar seguras em suas casas. O restante continua trabalhando normalmente, utilizando transporte público para se deslocar casa-trabalho-casa. Com isso, essas mulheres e consequentemente os seus familiares e vizinhos ficam expostos diariamente ao risco de contaminação.
No atual contexto de pandemia, o governo federal permitiu que patrões suspendam temporariamente o contrato ou reduzam a jornada de trabalho das domésticas com vínculos formais. No primeiro caso, a doméstica poderia ficar em casa e o governo vai remunerá-la com um salário mínimo por 2 meses. No segundo caso, a complementação do salário da doméstica que teve sua redução seria pago pelo governo.
Para as informais que perderam o trabalho, a única possibilidade de renda nesse momento de isolamento social é o auxílio emergencial do governo federal, que ao cumprir as condições relacionadas a composição do domicílio e o papel da mulher no mesmo, as cotas/parcelas tem valor inicial de R$ 600,00, mas pode chegar até R$ 1.800,00 por domicílio. Mas a operacionalização do recebimento deste benefício não tem sido ágil, pois depende do acesso à internet ou ida até as agências bancárias/lotéricas (conforme demonstrado em artigos anteriores do ONAS). Cabe ressaltar que esse montante é relativamente superior ao salário médio das domésticas informais de todos os estados do Nordeste. Portanto, se esse auxílio chegar até essas mulheres, os efeitos da pandemia podem ser minimizados. Entretanto, esse benefício será pago por apenas 3 meses, tempo que pode ser insuficiente para reparar os danos que a Covid-19 vai causar na vida laboral dessas mulheres e dos familiares que dependem do seu sustento.
E quando tudo passar, os mesmos empregadores irão retomar essa prestação de serviços? Nesse momento, o que prevalece são as incertezas. Conforme aponta o relatório “Mulheres no centro da luta contra a crise Covid-19”, da ONU Mulheres, as empregadas domésticas representam um grupo de mulheres que será bastante afetada pela crise econômica que acompanha a pandemia mundial. Com isso, tende-se a agravar as desigualdades e as diversas vulnerabilidades desses grupos ocupacionais e de suas famílias. E em regiões como o Nordeste brasileiro, com maior precariedade dos vínculos empregatícios e menor remuneração, este agravo pode ainda ser maior. Diante disso, é necessário pensar em políticas públicas para proteger essa classe de trabalhadoras que é invisível, mas que são muito importantes dentro da estrutura social brasileira.
Luana Junqueira Dias Myrrha – Demógrafa, professora do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais (DDCA) e do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Silvana Nunes de Queiroz – Demógrafa, professora do Departamento de Economia da Universidade Regional do Cariri (URCA) e do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Priscila de Souza Silva – Doutoranda em demografia do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Luana Damasceno – Bolsista de Iniciação Científica, graduanda em Gestão de Políticas Públicas na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Confira essa e outras análises demográficas também no ONAS-Covid19 [Observatório do Nordeste para Análise Sociodemográfica da Covid-19] https://demografiaufrn.net/onas-covid19