Ainda no início dos trabalhos do nosso Observatório, no dia 29.03, publicamos uma pequena nota comentando uma informação que circulava pelas redes sociais falando sobre um suposto primo do porteiro que teria morrido pelo estouro do pneu do caminhão em seu rosto, mas que em seu atestado de óbito a causa teria sido registrada como se fosse Covid-19. Também comentamos no ONAS sobre o suposto decreto que obrigava o SAMU de São Paulo a registrar como Covid-19 qualquer caso de falecimento. Mas parece que passados quase dois meses e 35 mil óbitos adicionais desde essas publicações, ainda há uma dificuldade de se entender que não se forjam dados de mortes nessa escala. Lamentavelmente, essa percepção também existe nos meios políticos.
Essa semana o sistema que apresenta os dados compilados de casos e óbitos pela Covid-19 no Ministério da Saúde apresentou atraso da divulgação, site em manutenção e redução dos dados apresentados. Segundo se sabe, há uma crença entre a gestão federal de que os dados estejam sobre-enumerados por interesses de repasse de recursos dos estados e municípios. De fato, o registro de dados de mortalidade é complexo e segue uma rotina de procedimentos. E sim, há mais de uma fonte desse dado. O dado do Ministério da Saúde (declaração de óbito) e o dado do Registro Civil (atestados de óbitos lavrados nos cartórios). São perfeitos? Claro que há dificuldades, sobretudo no momento em que é necessário uma avaliação em tempo real dos casos de uma doença ainda pouco conhecida.
De certa maneira, faz sentido revisar os dados. Mas isso é feito sistematicamente desde sempre. O próprio sistema do Ministério da Saúde divulgava a informação sobre “casos em investigação”. Afinal, sabe-se que os testes laboratoriais demoram alguns dias para darem o resultado e, portanto, ao se revisar dados é mais provável que se encontre mais casos de Covid-19 do que aqueles registrados imediatamente. Quando o caso grave evolui e o paciente fica internado alguns dias, há tempo para que o resultado do exame chegue e, caso ocorra um óbito, registra-se com certeza sobre a causa. Por outro lado, quando o caso já chega grave para hospitalização, o resultado do teste pode chegar alguns dias depois que o paciente tenha falecido. Nesse caso, a declaração de óbito emitida pelo sistema de saúde registraria possivelmente Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) e/ou suspeita de Covid-19, mas tendo sido feito o teste, a informação permaneceria “em investigação” até que o resultado final fosse confirmado ou não para que entrasse na estatística de Covid-19 pelo Ministério da Saúde.
No caso dos registros do cartório, essa revisão do dado em relação às causas não ocorre. Então, tendo sido registrado o caso como SRAG, devido a ausência do teste laboratorial, as estatísticas do registro civil permanecerão assim. Nesse sentido, sem existência de testes em grande quantidade, a tendência é que os registros de Covid-19 sejam menores do que aqueles oficialmente registrados. Mas mesmo que não se confirmem os casos por Covid-19 nunca, avaliar a quantidade excessiva de casos de SRAG neste ano em relação a anos anteriores já dá indícios de que uma epidemia esteja ocorrendo.
A informação sobre os casos “em investigação” é relevante para o planejamento. Sabe-se que os testes foram feitos e que se aguarda a confirmação de uma quantidade de casos adicionais. Isso não é um problema do Brasil, mas em todo o mundo. Quanto mais se testa, mais se sabe sobre a dimensão da doença. Marcelo Soares, responsável pelo portal lagom data, publicou uma análise que mostra a razão entre as mortes atribuídas à SRAG para cada um de Covid-19. O gráfico mostra que quanto maior é a quantidade de casos de SRAG, menor é a de casos de Covid-19.

Enfim, o desafio dos dados é enorme. Embora para a maior parte da sociedade o que possa parecer ser mais interesse seja apenas o total de óbitos ou a quantidade de óbitos ocorridos nas últimas 24h, como o portal do Ministério da Saúde agora apresenta, para a gestão e para as análises epidemiológicas, socioeconômicas e demográficas, é fundamental ter a maior quantidade de dados disponíveis. Ainda que sejam parciais, incompletos ou sujeitos à revisão e crítica, a informação mais detalhada e a diversidade de fontes e categorizações, permitem entender melhor os processos e tendências. Afinal, o dado pelo dado não diz nada, é preciso trata-lo, analisa-lo e cruza-lo com outras informações para que possa ser de interesse social. Sem isso, flexibilizar as medidas de distanciamento social, por exemplo, seria um salto no escuro.
Editorial | 07.06.2020 | Ricardo Ojima | Coordenador do ONAS-Covid19 | Programa de Pós-Graduação em Demografia | Universidade Federal do Rio Grande do Norte | Sem dados, um salto no escuro
Confira essa e outras análises demográficas também no ONAS-Covid19 [Observatório do Nordeste para Análise Sociodemográfica da Covid-19] https://demografiaufrn.net/onas-covid19