A subnotificação no número de óbito por Covid-19 parece ser um problema global. Duas das principais causas podem estar relacionadas a quantidade insuficiente de testes que vêm sendo realizados e a demora entre a realização do teste e divulgação dos resultados. O Brasil tem uma das menores taxas de teste do mundo, cerca de 63 testes para cada 100.000 habitantes.
Um olhar sobre os dados divulgados recentemente nos permite uma análise preliminar da magnitude da subnotificação nas diversas regiões do Brasil. Uma forma direta é ver o excesso de mortalidade geral, ou da mortalidade por idade, com base no número de óbitos de anos anteriores. Existem métodos adequados para lidar com isso, sendo possível ter uma ideia de como a mortalidade aumentou em determinado ponto do tempo e quais idades foram as mais afetadas. Há uma série de estudos similares para outros países do mundo, reportados pela revista The Economist e pelo jornal The New York Times.
O excesso de mortalidade é geralmente entendido como o número de mortes (por qualquer causa de morte) que estamos vendo agora (por exemplo, neste mês), subtraindo ou dividindo pelo número de mortes que teríamos observado na ausência da pandemia de Covid-19. A questão central é como medir esse contrafactual, ou seja, “qual o número de mortes que teríamos visto na ausência de Covid19”? Uma maneira relativamente simples de fazermos este exercício para uma localidade específica é calculamos o número médio de mortes nesta localidade por um determinado período de tempo nos últimos n anos anteriores, ou seja, quando o Covid-19 não havia emergido como causa de morte, e subtrairmos do número médio de óbitos nos meses recentes, depois do surgimento da pandemia.
É importante ressaltar que nem todo o excesso de mortalidade seria devido à Covid-19, mas olhar para o excesso de mortes recentes, em comparação com anos anteriores pode servir como boa estimativa de tendência sobre a letalidade da doença. Conforme apontou Andrew Noymer, temos que considerar o efeito da epidemia em três tipos de mortalidade.
- A mortalidade direta: mortes mensuradas atualmente e registradas como Covid-19;
- A mortalidade direta-indireta: mortes precoces de Covid-19 que foram confundidas com outras doenças respiratórias e mortes posteriores de Covid-19 que, de alguma forma, não são registradas como tal;
- A mortalidade indireta: mortes por qualquer outro problema de saúde que só ocorreram devido à sobrecarga que a Covid-19 causou no sistema de saúde.
Mas nem todas as mudanças são integralmente negativas, nesse primeiro momento de isolamento social é esperado as taxas de morte por causas externas (principalmente acidentes de transporte e mortes violentas) diminuam devido à redução de circulação de pessoas e, portanto, reduzindo o tráfego nas cidades e rodovias e o número de homicídios. Pontualmente, para o Estado do Rio Grande do Norte, já há evidência que esse declínio ocorreu, como demonstrado em análise publicada aqui no ONAS-Covid19 a partir da base de dados do Observatório da Violência. Contudo, na base de dados atual do Registro Civil ainda não é possível observar essa hipótese em âmbito nacional, uma vez que a atualização atual ainda não dispõe das informações de causas de morte com esse nível de detalhe.
Nesta nota usamos os dados dos registros administrativos de óbitos, por meio de atestados de óbito. Esses dados são fornecidos pelos Escritórios de Registro Civil Brasileiro no ‘Portal da Transparência – Registro Civil‘. Esses dados são desagregados por sexo, faixas etárias, estados e cidades com pelo menos 100 óbitos registrados. Análises recentes realizadas pelo professor e pesquisador Paulo Lotufo evidenciaram o excesso de mortalidade em algumas localidades do país.
Conforme apontado pelo sistema de registro civil, os dados sobre datas de óbitos mais recentes podem sofrer algumas alterações devido à entrada dos novos registros e às correções feitas nos óbitos já registrados. O tempo entre a ocorrência do óbito e a disponibilização da informação no sistema depende do caminho que a declaração de óbito precisa fazer, desde a sua emissão e registro em cartório até a sua inclusão na base de dados do sistema, conforme já explicado em outra análise publicada aqui no ONAS-Covid19. Ou seja, a análise deve ser atualizada e ajustada regularmente. Em que pese esta limitação da base de dados, o objetivo de aferir excesso de mortes no atual período não fica prejudicado, uma vez que a possibilidade de atualização dos dados só poderia acusar aumento da sobremortalidade de 2020 com relação ao período anterior. Neste sentido, o excesso de morte analisado neste texto pode estar subnotificado. O problema maior para a análise do excesso de mortes seria se os dados estivem registrando mortes a mais do que efetivamente ocorrem e não há evidências que isso esteja ocorrendo.
A Figura 1 apresenta, para seis cidades selecionadas, a evolução mensal da mortalidade geral (todas as causas) entre os anos de 2019 e 2020, nos primeiros meses de cada ano. Em todas as cidades destacadas na Figura 1 é possível perceber o efeito da pandemia da Covid-19 em março-abril de 2020, pois observa-se um número elevado de óbitos, bastante superior na comparação com o ano anterior. Destaca-se o caso de Manaus, onde observamos um aumento substancial do número de óbitos a partir de março de 2020 em relação ao mesmo período em 2019. Aumento este que já foi noticiado em pesquisa anterior.

A comparação na variação de números absolutos de óbitos fica comprometida na medida em sua magnitude depende dos diferentes tamanhos de população. Neste caso, é importante olhar para a variação percentual do número de óbitos em cada uma das cidades apresentadas na Figura 1, entre os quatro primeiros de meses de cada ano, tal como apresentamos na Figura 2. Os resultados indicam que a variação percentual no número de óbitos em janeiro e fevereiro é baixa, chegando a ser até negativa em algumas cidades. No mês de março, observamos um tímido aumento na variação percentual dos óbitos em São Paulo e no Rio de Janeiro. Já no mês de abril, que já contava com aumento de casos e óbitos notificados de Covid-19, observamos aumentos na variação percentual dos óbitos em todas cidades, especialmente em Recife, São Luís e, principalmente, Manaus, com aumento de óbitos de 47%, 54,5% e 151,7%, respectivamente.
Apesar da grande variação no número de óbitos nos quatro primeiros meses em 2019 e 2020, os resultados apresentados nas Figuras 1 e 2 evidenciam um excesso de mortes em cidades que, atualmente, estão sendo mais afetadas pelo Covid-19, em especial aquelas que apresentam um cenário de iminência de total colapso no sistema de saúde pública, como são os casos de Manaus, São Luís e Recife. Esse excesso de mortes pode indicar dois cenários alarmantes. Em primeiro lugar, pode revelar um grau elevado de subnotificações, caso uma parcela considerável do excesso seja de mortes efetivamente pela Covid-19, mas não são registradas como tal. E em segundo lugar, pode indicar um aumento na letalidade por outros tipos de doenças, cujo tratamento ou intervenção não foi realizado adequadamente devido à sobre-utilização dos hospitais e atendimentos de emergência.

Dentre as seis capitais analisadas e com situação muito preocupante no que se refere ao aumento de mortes, Manaus, São Luís, Recife e Fortaleza estão em regiões com maior precariedade socioeconômica, com maior contingente de população pobre e, portanto, em estágio de vulnerabilidade acima da média nacional, o que torna ainda mais urgente tomar ações integradas entre os entes federados (União, Estados e Municípios). É fundamental, contudo, que essa análise seja atualizada constantemente e que os dados continuem sendo avaliados e analisados com cuidado.
As análises apresentadas aqui têm uma importante limitação: essas estimativas são baseadas em dados preliminares (de 03/05/2020). Mas como ressaltamos essa condição só torna a análise mais enfática, pois a correção e completude dos dados tornará o excesso de mortes mais evidente ainda. Importante ainda que as agências liberem os dados com o maior detalhamento possível, como sexo, idade e causas de morte, de modo que os gestores de saúde possam acompanhar o potencial efeito da epidemia na saúde geral da população.
Everton Emanuel Campos de Lima – Demógrafo, professor do Departamento de Demografia e do Programa de Pós-Graduação em Demografia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Marcos Roberto Gonzaga – Demógrafo, professor do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais (DDCA) e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Bernardo Lanza Queiroz – Demógrafo, professor do Departamento de Demografia e do Programa de Pós-Graduação em Demografia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Flávio Henrique Miranda de Araujo Freire – Demógrafo, professor do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais (DDCA) e do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Estevão Vilela – Bacharel em administração pública (FJP/MG) e graduando em matemática computacional (UFMG).
Confira essa e outras análises demográficas também no ONAS-Covid19 [Observatório do Nordeste para Análise Sociodemográfica da Covid-19] https://demografiaufrn.net/onas-covid19
Esta reportagem nao foi esclarecedora.
Gostaria do real numero de mortes em todas as areas.
Ex: Cadio vasculares – Renal – Suicidio e etc
Tem vários óbitos, só se morre de COVID-19 no Brasil?
Isso é um absurdo!
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