Entre as medidas de combate à pandemia da Covid-19, uma das mais importantes para reduzir a velocidade da contaminação foi a suspensão das atividades escolares, em todos os seus níveis. Os estudos epidemiológicos confirmam que é reduzida a participação de casos graves da doença entre as crianças e adolescentes, mas isso não significa que não se contaminem. Esses jovens, normalmente, apresentam quadros leves ou até assintomáticos da doença e, com isso, seriam um grupo relevante com potencial de contaminação de outras pessoas. Discutimos em análises anteriores que se as aulas não fossem suspensas, sendo os jovens em grande maioria assintomáticos, as salas de aula poderiam se tornar um espaço privilegiado para o vírus ampliar seu alcance e, assim, atingir os grupos mais vulneráveis quando estes jovens retornassem para suas casas.
Desde o início de março, diversos decretos estaduais e municipais suspenderam as atividades escolares e seguem assim até o presente momento. Já são quase dois meses de atividades suspensas em todo o país. Como em diversos outros setores da sociedade, a pandemia da Covid-19 agudizou as desigualdades sociais pré-existentes e não foi diferente no caso da educação. Algumas escolas particulares se ajustaram às condições de isolamento social e passaram a oferecer aulas online, atividades à distância e outras ferramentas, valendo-se da infraestrutura de internet e computadores a que seus alunos têm acesso.
No extremo oposto a essa situação, escolas públicas não dispõem da mesma infraestrutura para se ajustar ao contexto de isolamento com o uso de ferramentas digitais e internet, mesmo que nelas estivessem matriculados 87% dos alunos do ensino médio do Brasil em 2019. A infraestrutura quase sempre é pequena em relação a equipamentos digitais e, mesmo quando existem, os docentes não dispõem de tempo para a preparação de um conteúdo formatado a essa realidade. Afinal, transferir as atividades escolares para uma abordagem de ensino a distância não é simplesmente gravar as aulas em formato de vídeo. Muda-se a metodologia, muda-se a forma de interação e são necessárias outras ferramentas de complementação de estudos que os docentes e as escolas públicas não possuem. Trataremos dessas características em texto futuro.
Nesse momento, vamos analisar o perfil dos alunos do ensino médio, pois mesmo que todas as escolas dispusessem de infraestrutura e condições para aulas virtuais, os alunos das escolas públicas teriam condições de acompanhar sem maiores prejuízos a formação? Dia 11 de maio foram abertas as inscrições para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2020. Apesar de inúmeros pedidos de entidades estudantis, movimentos sociais e instituições de ensino e pesquisa, o Ministério da Educação (MEC) decidiu por não alterar o calendário do Enem. Para o Ministro da Educação, o Enem não foi feito para corrigir injustiças e, com isso em vista, uma campanha publicitária foi lançada pelo MEC. Com o título de “O Brasil não pode parar”, o vídeo anuncia a manutenção das datas de exames para novembro e apresenta jovens argumentando que um geração inteira de futuros profissionais não poderia ser perdida por conta da pandemia e que é necessário, apenas, estudar de casa.
Separamos os dados dos alunos dos segundo e terceiro ano do ensino médio no ano de 2019 (dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, PNAD) em relação às suas características domiciliares. As diferenças de acesso à internet em casa entre os alunos de escolas públicas e privadas são importantes. Em 17 Unidades da Federação (UF) temos que 100% dos alunos de escolas privadas teriam acesso à internet em casa para continuar os estudos durante a pandemia. Por outro lado, entre os alunos da escola pública, nenhuma UF do país atinge esse indicador. A situação de desigualdade é mais visível na região Nordeste, onde está mais da metade dos estudantes de ensino médio sem acesso à internet em casa no Brasil, sendo os estados do Maranhão e do Piauí os que se encontram em situações mais graves, com cerca de 70% de acesso à internet em casa entre os alunos das escolas públicas (Figura 1).

Mas o acesso à internet por si só também não é suficiente para entender as condições em que se encontram os jovens estudantes para manter seus estudos em casa. Não é possível estudar adequadamente para um exame relevante como é o Enem, que é a principal forma de acesso ao ensino superior, usando apenas um celular. Mesmo que muitos destes jovens hoje tenham um celular com acesso à internet, isso não significa que eles sejam adequados para os estudos no âmbito doméstico. É comum que às vezes as pessoas se deparem com a necessidade de ter que apagar fotos do celular quando precisam instalar um novo aplicativo, ou mesmo receber uma atualização de um aplicativo já instalado. Pensemos, então, como seria estudar, baixar arquivos e ler longos textos em aparelhos sem muita capacidade de memória ou processamento ao longo de meses.
As desigualdades aumentam e ficam ainda mais evidentes quando comparamos o acesso a computador nos domicílios dos estudantes de escolas públicas e privadas no Brasil. A Figura 2 mostra que as desigualdades são enormes tanto em termos da comparação entre escolas públicas e privadas. Isso também ocorre entre regiões e UFs, pois a proporção de alunos com computador em casa em escolas privadas no Maranhão é equivalente à proporção de computador em casa de alunos de escolas públicas no Distrito Federal (66% e 67%, respectivamente). O Rio Grande do Norte é a UF do Nordeste com melhor situação de alunos de escolas públicas com computador em casa (ainda que seja de apenas 37,6%) e o Maranhão o pior, com apenas 15,6% dos domicílios. No Maranhão, portanto, apenas um a cada seis estudantes que fariam o Enem esse ano teriam computador em casa para se dedicar à preparação para a prova que ocorrerá em novembro.

Assim, questiona-se qual é a responsabilidade e o papel do Estado em oferecer condições mínimas de competitividade entre os estudantes que pretendem acessar o ensino superior. O Enem pode ser o principal mecanismo de ascensão social para muitos destes alunos do ensino médio em escolas públicas. Já é uma pressão e desafio enorme mesmo para os jovens com excelentes condições socioeconômicas mesmo sem o contexto de isolamento social. Dificilmente uma geração seria perdida se o MEC decidisse adiar por algumas semanas a data do exame do Enem. As universidades públicas, principal alvo dos estudantes que realizarão o Enem em 2020, estão também com as suas atividades suspensas e, muito provavelmente, terão os calendários dos semestres letivos postergados. O que indica que, na alternativa de um adiamento da realização do exame nacional, não haveria prejuízos no calendário de ingresso no ensino superior.

A verdade é que adiar o Enem não deve prejudicar uma geração inteira de profissionais, como sugerido pela campanha publicitária do MEC. Porém, a manutenção do calendário deve sim dificultar e até inviabilizar a conclusão do ensino médio de significativa parcela de jovens de escolas públicas do Brasil e, principalmente do Nordeste. São cerca de 7 milhões de jovens em escolas públicas, sendo 2,2 milhões no Nordeste. Para eles, as condições de estudo remoto nesse período de isolamento social demonstram-se fortemente insuficientes e precárias. Além das dificuldades e pressões já existentes sobre esses jovens que buscam concluir o ensino médio e ingressar em uma universidade, seria esperado que se buscassem alternativas para minimizar o sofrimento psicológico que o contexto da pandemia já nos coloca. Afinal, se o Enem não serve para corrigir injustiças, pelo menos não deveria agravá-las.
Jordana Cristina de Jesus – Demógrafa, professora do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais (DDCA) e do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Ricardo Ojima – Demógrafo, professor do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais (DDCA) e do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Confira essa e outras análises demográficas também no ONAS-Covid19 [Observatório do Nordeste para Análise Sociodemográfica da Covid-19] https://demografiaufrn.net/onas-covid19
Artigo com dados muito interessantes. A educação não deve ser um fator que preserve as desigualdades sociais; muito pelo contrário, deve contribuir para superá-las.
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