O que já sabemos sobre os impactos socioeconômicos da pandemia da Covid-19 para as mulheres?

Até o momento em que esse texto foi publicado, o país registrava 57.622 mil mortes e mais de 1,3 milhões de infectados pela Covid-19. Em 11 de março deste ano, a Organização Mundial de Saúde decretou que o alastramento do vírus havia tomado a dimensão de uma pandemia. Essa situação pandêmica exigiu, de dezenas de países, ajustes sociais e econômicos para conter a contaminação massiva das pessoas por um vírus desconhecido, para o qual não se tem, até o momento, nem vacina e nem medicamentos comprovadamente efetivos. A única forma de conter o avanço da pandemia é fazendo o máximo de esforço para evitar o contágio, o que é feito através do isolamento social.

As medidas que direcionaram o isolamento social nos países, bem como os períodos de duração, estão associadas a condições sociais, culturais, econômicas, demográficas e também de infraestrutura dos sistemas de saúde de cada região. Para que as pessoas se isolem em casa, diversas atividades econômicas foram suspensas com exceção daquelas tidas como essenciais. Inevitavelmente, esse cenário impacta a situação econômica dos países, uma vez que atinge os níveis de produção, consumo, emprego e renda. Para controlar parte dos efeitos deletérios que a pandemia tem sobre a economia e sobre os trabalhadores que enfrentam mais vulnerabilidades, o apoio do Estado é essencial.

As crises econômicas tendem a atingir de modo mais profundo as pessoas que já se encontravam em situações de maior desvantagem no mercado de trabalho. Neste grupo, infelizmente, encontram-se a maioria das mulheres. O Gráfico 1 apresenta alguns dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (IBGE), no primeiro trimestre de 2020, quando os efeitos do distanciamento social ainda eram pouco perceptíveis. Enquanto 70,2% dos homens faziam parte da força de trabalho, o percentual entre as mulheres era de apenas 52,1%. Na força de trabalho, encontram-se os trabalhadores que já estão ocupados, ou seja, que têm um emprego, e aqueles que estão em busca de uma ocupação, que estariam, portanto, desempregados. A taxa de desemprego nesse mesmo período, para os homens, foi de 10,4%, ao passo que a taxa entre as mulheres foi de 14,5%.

Gráfico 1: Percentual de pessoas de 14 anos ou mais de idade segundo participação na força de trabalho e segundo ocupação na semana de referência. Brasil, 1º trim 2020. Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua trimestral

A participação na força de trabalho e, por conseguinte, a ocupação de um ponto de trabalho, estão ligadas diretamente ao acesso à renda, o que nos permite concluir, portanto, que as mulheres possuem menos acesso a rendimentos do que os homens. Além disso, as mulheres são mais presentes entre os trabalhadores informais, 41,6% das que estavam ocupadas em 2018 estavam nessa situação. Na situação de informalidade, os trabalhadores além de estarem desprotegidos, auferem menores salários. Segundo a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, em 2018, o rendimento médio habitual mensal de um trabalhador sem carteira assinada corresponde a apenas 60% do rendimento médio dos trabalhadores com carteira assinada.  Temos, ainda, entre as mulheres jovens negras, de 15 a 29 anos, a maior proporção daquelas que não estudavam e não estavam ocupadas, 32%, contra apenas 15% entre os homens brancos na mesma idade. Essas jovens, embora não tenham atividades remuneradas, são responsáveis pelos trabalhos domésticos em seus domicílios. Essa diferença também se faz presente na pobreza monetária, já que, em 2018, o percentual de mulheres negras em domicílios com rendimento per capita abaixo da linha da pobreza era de 33,5%. Isso significa que 1 a cada 3 mulheres negras no Brasil vive em situação de pobreza. No caso dos homens brancos, a proporção aproximada é de 1 a cada 7.

Nesse cenário já desigual, espera-se que os impactos sociais e econômicos, como desdobramentos da pandemia, sejam sentidos mais fortemente por elas e as evidências já começam a despontar.  Em março, um dos primeiros artigos analisando os efeitos da Covid-19 na igualdade de gênero foi publicado em uma revista científica internacional. Em três meses, esse artigo já foi citado em outros 90 trabalhos, o que demonstra a importância científica que tem sido dada ao assunto. Nesse primeiro trabalho, os autores investigaram os efeitos das medidas de distanciamento social nos EUA durante a crise da Covid-19.

Para os autores desse artigo, que abre as discussões, as implicações substanciais para a igualdade de gênero não se darão apenas durante a crise, mas também durante a fase de recuperação posterior à pandemia. Essa crise apresentaria um diferencial porque, ao contrário de outras recessões econômicas, que tendem a afetar os empregos dos homens, como ocorreu na I e II Guerras Mundiais, esse novo cenário afeta os setores com alta participação no emprego feminino. De fato, essa mesma tendência já pode ser observada no Brasil. O Gráfico 2 apresenta a participação feminina e masculina em cada setor de atividade no Brasil, nos vínculos de trabalho formal.

Gráfico 2: Distribuição dos vínculos ativos de postos formais em 31/12/2018 por sexo segundo setor de atividade. Brasil, 2018. Fonte: RAIS

A participação feminina só é maior que a masculina na administração pública. A segunda maior participação feminina é no setor de serviços, representando 49% dos vínculos formais, e a terceira maior participação é no setor de comércio, com 44% de composição feminina. De acordo com os recentes dados divulgados pelo IBGE, referentes à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Mensal (PNADM), ao compararmos a média trimestral de fev/mar/abr 2020 com a de nov/dez/jan 2020, no país houve uma queda de 4,9 milhões de postos de trabalho,  como consequência da crise econômica e política que se arrasta desde de 2015 e do contexto epidemiológico mundial, com a pandemia da Covid-19. De acordo com o Gráfico 3, a maior redução de postos de trabalho, em termos absolutos, foi no setor de comércio (1,2 milhão de postos), seguido pela construção (885 mil postos), serviço doméstico (727 mil postos) e alojamento e alimentação (700 mil postos).

É importante destacar que mais de 90% dos trabalhadores no serviço doméstico são mulheres, assim como nas atividades do comércio, alojamento e alimentação, as mulheres também são mais frequentes que nas demais atividades. Por outro lado, houve o aumento de 287 mil postos de trabalho na atividade “Administração pública, defesa, seguridade social, educação, saúde humana e serviços sociais” devido a contratação de profissionais de saúde para o enfrentamento da pandemia. Os profissionais de saúde que estão na linha de frente ao combate da doença são em sua maioria mulheres (80%), mas essa geração de empregos não compensou as perdas nas demais atividades. Portanto, em uma análise mais ampla, os efeitos desse novo cenário de fato têm afetado os setores com alta participação no emprego feminino (barras roxas no Gráfico 3).

Gráfico 3 – Variação dos postos de trabalho no Brasil por por grupamentos de atividade no trabalho principal, considerando as médias mensais dos trimestres nov-dez-jan 2020 e fev-mar-abr 2020. Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua mensal

Para além das atividades econômicas, fora dos domicílios, também existe uma preocupação quanto às atividades domésticas sob responsabilidade feminina, que estão associadas às limitações que as mulheres encontram para participar do mercado de trabalho. As mulheres são responsáveis pela maioria dos afazeres domésticos e o esperado é que com o fechamento de escolas e creches, a carga de trabalho doméstico e de cuidados de crianças tenha aumentado enormemente. No Gráfico 4, focamos nos adultos de 18 a 49 anos, com filhos, que estão na condição de responsável pelo domicílio ou cônjuge do responsável e analisamos o tempo de trabalho doméstico feito por homens e mulheres em arranjos monoparentais, ou seja, só com um dos pais, e em arranjos biparentais, em que ambos os pais estão no domicílio.

Essa é a carga de trabalho doméstico com a qual as famílias já estavam lidando antes da pandemia. Qualquer que seja a composição familiar, o tempo dedicado pelas mulheres é sempre maior. Entretanto, enquanto os homens passam a fazer mais trabalho doméstico quando estão em arranjos monoparentais, nesse contexto as mulheres fazem menos trabalho, já que parte do trabalho feito pelas mulheres é direcionado também aos parceiros. Em um domicílio do tipo casal com filho, com criança(s) de até 5 anos, as mulheres dedicam, em média, por semana, 28 horas e 40 minutos ao cuidado da casa e dos filhos. Se os filhos estão na idade escolar, a carga de trabalho doméstico observada é de 23 horas e 54 minutos em média por semana. No domicílio com mãe e filhos que estejam em idade escolar, a jornada deste trabalho é de 21 horas e 54 minutos. Nesses domicílios, o aumento no trabalho doméstico é esperado com a suspensão das aulas.

Gráfico 4: Tempo médio semanal dedicado às atividades de cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos por sexo, tipo de arranjo domiciliar, para pessoas de 18 a 49 anos, que são responsáveis pelo domicílio ou cônjuge do responsável. Brasil, 2019. Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua

A dificuldade das mulheres no acesso ao trabalho remunerado se agravou no atual contexto, com a evidente perda de postos de trabalho nas atividades em que elas mais se inserem. Essa dificuldade pode ser ampliada com a retomada das atividades econômicas descolada da retomada de escolas e creches.  O cuidado familiar, que historicamente é naturalizado como uma responsabilidade feminina, vai pesar novamente para elas, que provavelmente terão que abrir mão de se manter empregadas para cuidar do(s) filho(s). Nesse momento, mais do que nunca, a necessidade de socialização das demandas familiares, principalmente de cuidados de filhos, precisa ser discutida para minimizar o acumulativo efeito da pandemia na vida das mulheres, sobretudo das mais pobres. Essas significativas desigualdades de gênero já presentes em nossa sociedade precisam ser consideradas na retomada da economia pelos governos estaduais para não as tornar ainda maiores.

Jordana Cristina de Jesus – Demógrafa, professora do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais (DDCA) e do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Luana Junqueira Dias Myrrha – Demógrafa, professora do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais (DDCA) e do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Confira essa e outras análises demográficas também no ONAS-Covid19 [Observatório do Nordeste para Análise Sociodemográfica da Covid-19] https://demografiaufrn.net/onas-covid19

2 comentários sobre “O que já sabemos sobre os impactos socioeconômicos da pandemia da Covid-19 para as mulheres?

  1. Seja no tocante ao aumento da violência doméstica seja na questão abordada por esse texto, as mulheres tendem a se tornar mais vulneráveis socialmente, em meio a Pandemia da Covid 19.

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  2. Pingback: Elas por elas

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