Por que precisamos pensar na subnotificação dos casos de Covid-19?

Desde o primeiro caso suspeito de Covid-19 em 1 de dezembro de 2019 em Wuhan (província de Hubei, China) já são mais de 1,6 milhões de casos confirmados e 101.732 mortes relatadas em 185 países. Dados desse sábado (10.04.2020), às 17h de Brasília. Um ponto importante para o acompanhamento de epidemias e pandemias é conhecer a sua extensão e qual a confiabilidade da notificação dos casos confirmados e do número de óbitos. No caso da Covid-19, ter clareza nesses dados é importante para responder diariamente às seguintes questões:

Experiências anteriores demonstram que a qualidade dos dados nos sistemas de vigilância em saúde pode ser afetada, principalmente em situações de grandes epidemias ou pandemias de doenças novas, e apresentar algum grau de subnotificação, ocasionando incerteza acerca da real incidência da doença.

De uma forma geral, os sistemas de vigilância falham em capturar os casos em dois níveis distintos da pirâmide de vigilância: 1) da comunidade, pois nem todos os casos procuram assistência médica (subavaliação) e, 2) no nível da assistência médica, representando uma falha em relatar adequadamente os casos sintomáticos que procuraram orientação médica. Isso é uma realidade geral para qualquer registro de informação populacional e não se trata de uma questão política. Ou seja, sempre existe um grau maior ou menor de subnotificação de qualquer dado deste tipo, mas existem técnicas e metodologias capazes de avaliar qual a dimensão dessa situação.

A dimensão de uma epidemia pode ser seriamente subnotificada devido à etiologia desconhecida da doença e à falta de protocolo de diagnóstico no seu estágio inicial. Neste sentido, quando uma nova doença infecciosa surge, definições apropriadas de casos são importantes para o diagnóstico clínico e para a vigilância da saúde pública. Por exemplo, alterar as definições de caso durante uma epidemia pode afetar as inferências. Outros fatores que contribuem para a subnotificação incluem altos custos de testes e falta de infraestrutura de saúde que podem levar à falta destes.

No Brasil, o Ministério da Saúde tem chamado a atenção para a possibilidade de subenumeração dos casos registrados. Há atraso nos resultados dos exames por falta de insumos, como reagentes necessários para a realização dos testes, ou falta dos kits na quantidade necessária para testar a população, de maneira que os testes para COVID-19 estão restritos à pacientes com sintomas mais evidentes e profissionais de saúde.

Neste cenário, os registros de casos de COVID-19 no Brasil são afetados por subnotificação (para o caso de infectados assintomáticos) ou classificação equivocada como, por exemplo, e mais provável, seja classificada como outra síndrome respiratória. Neste sentido, um indício importante para avaliar se há baixa cobertura de diagnósticos da Covid-19 no Brasil, e mais especificamente no Nordeste, é verificar o aumento nas internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) quando comparamos 2019 com 2020. Isso se dá devido ao fato de que a Covid-19 é uma das causas que podem evoluir para uma SRAG, juntamente com doenças como H1N1, Influenza, etc. Na figura 2 apresentamos o número de internações por SRAG por estado da região Nordeste nas 14 primeiras semanas epidemiológicas desses dois anos (veja o que são as semanas epidemiológicas).

No Nordeste como um todo, foram 1.782 internações por SRAG em 2019 até a 14a semana epidemiológica. Em 2020, esse número foi de 4.028, ou seja, 2,3 vezes o número de internações do ano anterior. Analisando por Unidade da Federação, a figura 2 reflete forte aumento no número de internações em todos os estados. No Estado do Maranhão, por exemplo, as internações por SRAG em 2020 equivalem a 9,4 vezes as internações registradas no mesmo período em 2019, representando uma variação de 839,7%. Depois temos Bahia, Ceará e Paraíba com internações em 2020 representando mais que 3 vezes a quantidade registrada no mesmo período do ano anterior.

Os resultados apresentados servem como alerta para a magnitude da subnotificação de registros de Covid-19 no Nordeste. Alguns estudos em curso já buscam estimar a subnotificação do número de casos confirmados e de óbitos. Um estudo da London School of Hygiene & Tropical Medicine usa a distribuição dos atrasos da hospitalização até a morte para ajustar a taxa mais próxima à real de letalidade por Covid-19 em vários países do mundo. O estudo inicial foi publicado em 22 de março de 2020, e já foi atualizado algumas vezes. As estimativas de cobertura dos registros por Covid-19 só pioram, segundo os autores. Em 22 de março de 2020 estimaram uma cobertura de 12% para o Brasil.

Alguns dias depois (02.04.2020), estimaram em 11% o percentual de casos registrados, podendo variar entre 8,9% e 14%. A atualização do estudo para 9 de abril de 2020 aponta que a cobertura do registro de Covid-19 no Brasil baixou para 7,3% (variando entre 5,8% e 18%). Isso significa que, tomando a estimativa pontual, para cada 100 casos de infecção apenas 7 são realmente notificados no País. Portanto, baseando-se nessa última estimativa mais recente, poderíamos multiplicar por 13,7 o número de casos de Covid-19 oficiais notificados.

Assim, se no dia 11.04.2020 tinhamos oficialmente registrados 19.638 casos, dada a estimativa, teríamos cerca de 250 mil casos que não teriam sido notificados. Esta incerteza sobre a real cobertura das notificações e, consequentemente dos óbitos, impõe grandes desafios para o sistema de saúde, seja pela baixa oferta de recursos físicos e humanos ou pela dificuldade em se prever, no curto e médio prazo, a real demanda por estes recursos. Diante disso, é fundamental que se amplie a capacidade de testagem para a Covid-19 para que não apenas os casos graves sejam avaliados. Com isso, poderíamos ter maior clareza dos desafios para enfrentamento da pandemia em cada caso e em cada região, pois como vimos, há indícios de que a subnotificação guarde diferenciais importantes entre os estados do Nordeste.

Flávio Henrique Miranda de Araujo Freire – Demógrafo, professor do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais (DDCA) e do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

José Vilton Costa – Demógrafo, professor do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais (DDCA) e do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Marcos Roberto Gonzaga – Demógrafo, professor do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais (DDCA) e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Confira essa e outras análises demográficas também no ONAS-Covid19 [Observatório do Nordeste para Análise Sociodemográfica da Covid-19] https://demografiaufrn.net/onas-covid19

2 comentários sobre “Por que precisamos pensar na subnotificação dos casos de Covid-19?

  1. Prezados,

    Gostaria de saber se foram comparados os números de casos de SRAG em extensões alternativas de semanas epidemiológicas, por exemplo, observando as diferenças nas sete ou oito primeiras semanas. Imagino que a comparação entre o número de notificações entre os meses de janeiro e fevereiro pode revelar a incidência da COVID19 antes da oficialização dos primeiros casos. Algo semelhante foi realizado para o estado de Minas Gerais.

    Atenciosamente,

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    1. Caro Igor, agracedemos o seu comentário. A mensagem foi repassada aos autores e sua contribuição será considerada para estudos futuros. Abraço.

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