Ao analisarmos a estrutura etária das mortes por COVID-19, nós verificamos um gradiente considerável, bastante semelhante ao observado nas taxas de mortalidade geral. A doença parece ser mais perigosa para as pessoas com pior saúde, e o surto na Europa e na América do Norte mostrou que doenças cardiovasculares, diabetes e obesidade aumentam o risco de complicações e morte para as pessoas infectadas (Jordan; Adab; Cheng, 2020). Nos países em desenvolvimento, portanto, o nível de morbidade da população mais jovem pode atuar como um risco adicional da mortalidade por Covid-19. Se por um lado uma estrutura etária mais jovem pode ter fator protetor, os níveis gerais de morbidade podem ter efeito contrário (Shumman, 2020).
Em uma nota anterior publicada aqui no ONAS, identificamos que a totalidade das microrregiões do Norte, e uma boa parte das microrregiões do Nordeste, aparecem em desvantagem quanto ao risco geral de mortalidade em comparação com as microrregiões do Sudeste e Sul do país, apesar destas últimas serem mais envelhecidas.
Nesta nota, avaliamos a distribuição espacial das principais causas de morte observadas entre as microrregiões brasileiras. Nos primeiros momentos da epidemia, é de se esperar que a mortalidade fique concentrada nos locais onde foram registradas as primeiras infecções, mas a partir do momento que a Covid-19 avança sobre todo o território brasileiro, é importante entender o padrão de mortalidade por causas, para elucidar o que pode vir a acontecer com a mortalidade e os sistemas de saúde nas próximas semanas e meses da epidemia. Há bastante evidência que os riscos de morte estão relacionados a aspectos como estrutura etária da população, condições gerais de saúde, fatores institucionais, infraestrutura de saúde na região e a situação socioeconômica a que a população está exposta. No caso da Covid-19, como já foi exposto, as comorbidades podem ter um efeito bastante negativo no risco de mortalidade pela epidemia e merecem ser analisadas.
Nessa análise usamos os dados do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) disponibilizados pelo DATASUS do Ministério da Saúde . O SIM fornece informações sobre o número total de mortes e causas de morte por idade e sexo, com dados de mortalidade organizados pelo código da Classificação Internacional de Doenças – CID (9ª revisão para 1980-1995 e 10º para 1996 em diante). Para facilitar esta análise, usamos a definição de microrregião do IBGE, que agrega municípios em pequenas áreas comparáveis. Os dados de mortalidade são de 2017.
As taxas de mortalidade por idade e causas de morte mostram um padrão bastante característico refletindo fatores associados ao ciclo de vida. A Figura 1 apresenta as taxas de mortalidade por idade das principais causas de morte. Observamos um nível muito alto de mortalidade por causas externas em adultos jovens, que é bastante discutido na literatura. As doenças cardiovasculares aumentam rapidamente com a idade, como observado em outros países, e se tornarão, em breve, a principal causa de morte no Brasil. A mortalidade por neoplasias e doenças respiratórias também aumentam seus riscos nas idades mais avançadas. No Brasil, elas também são altas entre os mais jovens, quando comparado com outros países mais desenvolvidos.

Diversos trabalhos apontam a importância de se avaliar as comorbidades nos países em desenvolvimento. Todavia, a distribuição dessas entre as localidades não é uniforme. As Figuras 2 e 3 mostram as taxas brutas de mortalidade padronizadas, pela estrutura etária da população brasileira em 2017, para homens e mulheres, respectivamente. Dada a magnitude da diferença nas taxas de mortalidade por causas externas entre homens e mulheres, decidimos deixar os mapas que mostram essas taxas para homens (Figura 2) numa escala diferente daquele para mulheres (Figura 3). Em todos os mapas das figuras 2 e 3 as cores azuis mostram áreas com menores taxas e as cores vermelhas mostram as áreas com taxas mais elevadas.

No que diz respeito as causas externas, as taxas de mortalidade são mais altas para os homens em todas as 558 microrregiões, com destaque para as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Além disso, aproximadamente 58% das mortes registradas por causas externas no sexo masculino estão entre as idades de 15 a 39 anos.
Em relação às doenças cardiovasculares, observamos que em aproximadamente 75% das microrregiões brasileiras, os homens apresentam taxas de mortalidade mais altas que as mulheres. As regiões Norte e Nordeste, são as regiões socioeconomicamente menos desenvolvidas do país e apresentam taxas de mortalidade maiores que as demais. Estudos anteriores mostram que locais menos desenvolvidos observaram o ritmo mais acelerado de aumento da mortalidade por doenças cardiovasculares nos últimos anos (Baptista e Queiroz, 2019a, 2019b).

No caso das doenças respiratórias, existe um equilíbrio entre homens e mulheres. Em aproximadamente 53% das microrregiões, as taxas são maiores entre os homens. Para essa causa de morte, observamos uma maior homogeneidade em todo o País no ano de 2017.
Em relação às neoplasias as taxas mais altas de mortalidade, em 2017, estavam concentradas na região sul do país (Figuras 2 e 3). No que tange ao diferencial por sexo, em 79% das microrregiões brasileiras as taxas de mortalidade por esta causa são maiores entre os homens.
Por fim, diabetes mellitus atinge, principalmente, as mulheres. Em aproximadamente 78% das microrregiões brasileiras as taxas de mortalidade são maiores para elas se comparado aos homens. Entretanto, a distribuição espacial sugere que, para os homens, esta causa é mais heterogênea ao analisarmos o país como um todo. A análise espacial também mostra que, tanto para homens como para mulheres, há uma concentração de altas taxas de mortalidade por diabetes em regiões do Norte e Nordeste do país.
Os resultados acentuam as conclusões da nota anterior deste observatório e indicam que apesar do fator protetor de uma estrutura etária mais jovem, as microrregiões do Norte e Nordeste do país apresentam taxas de mortalidade por idade mais elevadas para certas causas de morte que podem acentuar os riscos de complicação por Covid-19. Isso fica evidente com os mapas para doenças do aparelho circulatório e diabetes mellitus (Figuras 2 e 3). Como discutimos anteriormente, essas localidades concentram a maior parte da população dependente de programas de Auxílio Emergencial, maior concentração de trabalhadores no setor informal e uma pior estrutura do sistema de saúde. Essas características, somadas ao perfil de mortalidade por causas observado – com concentração de casos de mortalidade por doenças cardiovasculares e diabetes, apontam para uma população com uma pior condição de saúde geral, indicando uma possibilidade de maior vulnerabilidade aos efeitos da COVID-19.
Emerson A. Baptista – Demógrafo, professor e pesquisador no Asian Demographic Research Institute, School of Sociology and Political Science (Universidade de Shanghai, China)
Bernardo Lanza Queiroz – Demógrafo, professor do Departamento de Demografia e do Programa de Pós-Graduação em Demografia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Flávio Henrique Miranda de Araujo Freire – Demógrafo, professor do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais (DDCA) e do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Everton Emanuel Campos de Lima – Demógrafo, professor do Departamento de Demografia e do Programa de Pós-Graduação em Demografia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Marcos Roberto Gonzaga – Demógrafo, professor do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais (DDCA) e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Confira essa e outras análises demográficas também no ONAS-Covid19 [Observatório do Nordeste para Análise Sociodemográfica da Covid-19] https://demografiaufrn.net/onas-covid19
Para saber mais
Baptista, E. A., & Queiroz, B. L. (2019a). The relation between cardiovascular mortality and development: Study for small areas in Brazil, 2001–2015. Demographic Research, 41, 1437-1452.
Baptista, E. A., & Queiroz, B. L. (2019b). Spatial analysis of mortality by cardiovascular disease in the adult population: a study for Brazilian micro-regions between 1996 and 2015. Spatial Demography, 7(1), 83-101.
Borges, G. M. (2017). Health transition in Brazil: regional variations and divergence/convergence in mortality. Cadernos de saude publica, 33, e00080316.
Bong CL, Brasher C, Chikumba E, McDougall R, Mellin-Olsen J, Enright A. The COVID-19 Pandemic: Effects on Low and Middle-Income Countries [published online ahead of print, 2020 Apr 1]. AnesthAnalg. 2020;10.1213/ANE.0000000000004846. doi:10.1213/ANE.0000000000004846
Franca, E. B., de Azeredo Passos, V. M., Malta, D. C., Duncan, B. B., Ribeiro, A. L. P., Guimaraes, M. D., … &Camargos, P. (2017). Cause-specific mortality for 249 causes in Brazil and states during 1990–2015: a systematic analysis for the global burden of disease study 2015. Population health metrics, 15(1), 39.
Jordan, R. E.; Adab, P.; Cheng, K. K. Covid-19: risk factors for severe disease and death. BMJ (Clinical research ed.), v. 368, p. m1198, 2020.
Queiroz, B; Freire, F.; Lima, E.; Gonzaga, M.; Baptista, E. Patterns of Geographic Variation of Mortality by Causes of Death for Small Areas in Brazil, 2010. In Hoque, N (ed). Population Change and Public Policy, Springer (forthcoming) Shuchman M. Low- and middle-income countries face up to COVID-19. Nature Medicine [Internet]. 2020 May 21 [cited 2020 May 29]; Available from: https://www.nature.com/articles/d41591-020-00020-2