O perfil e a sobrecarga na jornada de trabalho de profissionais da linha de frente ao combate à pandemia da Covid-19

Até o dia 16 de abril de 2020, mais de 8 mil profissionais da saúde afastados de suas atividades no Brasil por apresentarem sintomas da Covid-19 ou por fazerem parte de algum grupo de risco. Contudo, não são apenas os profissionais diretamente ligados a assistência à saúde, como médicos, enfermeiros, técnicos em enfermagem, fisioterapeutas, nutricionistas e etc, que estão na linha de frente ao combate da nova doença. O grupo em exposição refere-se a uma ampla gama de atividades realizadas nos serviços de saúde para atendimentos aos pacientes que vão desde a chegada para o atendimento, passando pela triagem, consulta médica, realização de exames laboratoriais e de imagem, alimentação, higienização, dispensação de medicamentos entre outras. Portanto, é importante considerar também os profissionais que estão na invisibilidade, mas que são essenciais para o funcionamento das atividades realizadas nos serviços de saúde. São os recepcionistas, auxiliares de serviços gerais, copeiros de hospital, almoxarifes, auxiliar de lavanderia e limpeza, cozinheiros, coletores de resíduos, arquivistas, técnicos em nutrição e até os agentes funerários, entre outros.

Recorremos a Relação Anual de Informações Sociais (Rais, Acesso em 10 maio de 2020) que contabiliza e divulga os vínculos empregatícios formais ativos e inativos até o último dia de cada ano. Os dados da Rais cobrem aproximadamente 97,0% do mercado de trabalho formal brasileiro, sendo na prática, um censo sobre essa população. A opção pelo uso dessa base de dados em detrimento do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) se dá pelo fato do CNES não retratar o quantitativo efetivo da força de trabalho que atua nos serviços de saúde, pois prioriza a alimentação de dados obrigatórios exigidos pelo DataSUS. Ou seja, trata-se dos profissionais que efetuaram procedimentos geradores de pagamento na rede de serviços de saúde. Dito isso, no CNES um mesmo profissional pode ser contabilizado em mais de um estabelecimento de saúde, pois atua em mais de um local e essa informação não necessariamente explicita a pressão sobre a jornada de trabalho que estes profissionais relacionados a área de atendimento em saúde enfrentam com a pandemia da Covid-19.

Embora os dados da Rais mais recentes disponíveis sejam de 2018, a análise dos perfis e caracterização dessa força de trabalho não sofre tanta alteração, haja visto que mesmo com a contratação emergencial de profissionais, isso não seria suficiente para modificar as tendências que pretendemos analisar aqui. De acordo com essas informações, no Brasil haveriam pelo menos 1,4 milhões de profissionais expostos diariamente ao risco de contrair a Covid-19.

O Gráfico 1 apresenta a distribuição desses profissionais, considerando as ocupações diretamente ligadas à assistência à saúde (médicos, enfermeiros, técnicos em enfermagem, auxiliares de enfermagem, fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos, assistentes social, farmacêuticos e outros profissionais da saúde) e aqueles que dão suporte a essa assistência, como os recepcionistas e os serviços de apoio (profissionais de limpeza, copa/cozinha, lavanderia e almoxarifado). Importante destacar que quase 23% deles estão alocados em serviços de apoio e recepcionistas, percentual próximo do montante que agrega médicos, fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos, assistentes social, farmacêuticos e outros profissionais da saúde. Como ocorre para o Nordeste, os profissionais na linha de frente mais frequentes no país são os de enfermagem (enfermeiros, técnicos e auxiliares), correspondendo a 50% do total de trabalhadores.

Gráfico 1 – Distribuição dos trabalhadores formais em exposição direta à possibilidade de contágio pela Covid-19 por tipo de ocupação – Brasil, 2018 | Fonte: Relação Anual de Informações Sociais (RAIS, 2018).

No Brasil, 42 mil trabalhadores da linha de frente têm mais de 60 anos de idade, o que corresponde a 3,1% do total desses profissionais. Grupo que deveria estar afastado por fazerem parte do grupo de maior risco para as complicações da Covid-19. Outro dado importante é que quase 40% deles tem mais de 40 anos, idades em que as comorbidades (por exemplo, diabetes, hipertensão e afins) associadas ao maior risco de óbito pelo novo coronavírus tendem a estar mais presentes. Contudo, conforme demonstra a Figura 1, a composição etária difere de acordo com a ocupação, os auxiliares de enfermagem e os trabalhadores dos serviços de apoio apresentam uma estrutura mais envelhecida, com 54,3% e 56% de pessoas com mais de 40 anos, respectivamente.

É importante destacar que atualmente não existe mais a formação em auxiliar de enfermagem, que consistia em curso de capacitação para pessoas com até o ensino fundamental completo. No início dos anos 2000 ocorreu o Projeto de Profissionalização dos Profissionais de Enfermagem (PROFAE), levando à profissionalização de cerca de 230 mil auxiliares e atendentes de enfermagem que atuavam no sistema de saúde. Portanto, não há mais jovens sendo contratados com essa formação. Por outro lado, os serviços de apoio (profissionais de limpeza, copa/cozinha, lavanderia e almoxarifado) provavelmente são mais envelhecidos porque são ocupações que exigem baixa qualificação e que tem absorvido cada vez menos jovens, os quais tem tido mais oportunidade de qualificação ao longo do tempo, possibilitando-os a se inserirem em outras ocupações.

Outra importante informação da Figura 1 é que a linha de frente tem o rosto feminino em todas as ocupações, com exceção dos médicos, o que pode ser constatado pelas barras do lado direito (em roxo). Entre os médicos há um certo equilíbrio, na medida em que os homens correspondem a 51,3% e as mulheres 48,7%. Diante disso, diariamente mais de 1 milhão de mulheres no país expõem-se não somente de forma individual, mas também seus familiares, pois são as mulheres que carregam toda a carga do cuidado doméstico. Entretanto, o acesso aos serviços de saúde apresentam diferenciais entre esses trabalhadores, pois decorre da renda a maior chance de uma médica e sua família terem acesso a um leito em UTI com respirador na rede privada, do que uma recepcionista ou profissional de limpeza e seus filhos serem atendidos na rede pública.

Figura 1 – Distribuição etária dos trabalhadores formais em exposição direta à possibilidade de contágio pela Covid-19 por tipo de ocupação – Brasil, 2018 | Fonte: Relação Anual de Informações Sociais (RAIS, 2018).

Em termos regionais, a oferta desses trabalhadores por 100 mil habitantes é bastante desigual, conforme apresentado no Mapa 1. Acompanhando outras desigualdades, verifica-se maior contratação desses profissionais nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, nesta ordem, o que reflete uma maior oferta de serviços de saúde. A situação mais precária está no Norte e Nordeste, que chegam a contar com uma taxa de oferta de trabalhadores de saúde por 100 mil habitantes que é a metade das demais grandes regiões brasileiras.. Isso ocorre, pois a contratação de profissionais em estabelecimentos de atenção à saúde humana está diretamente associada à infraestrutura de saúde que cada região pode oferecer à sua população. Não por acaso as regiões Norte e Nordeste também são as mais carentes no que diz respeito a oferta de leitos e respiradores.

No Nordeste, por exemplo, há áreas com mais de 200 mil habitantes sem leitos de UTI, sobretudo em municípios que se encontram no semiárido nordestino, já muito carentes de diversos outros serviços básicos. Também não surpreende o fato de que estados dessas regiões tenham sido os primeiros do país a atingir o colapso do sistema de saúde, como aconteceu no Ceará (Nordeste) e o Amazonas (Norte), em meados de abril. Até o dia 7 de maio, cinco dos seis estados que já estavam com seu sistema de saúde saturado eram dessas regiões: Amazonas, Pará, Ceará, Pernambuco e Maranhão.

Mapa 1 – Número de trabalhadores formais em exposição direta à possibilidade de contágio pela Covid-19 a cada 100 mil habitantes, segundo Grandes Regiões – Brasil, 2018 | Fonte: Relação Anual de Informações Sociais (RAIS, 2018).
Nota: Ressalta-se que entre os estabelecimentos, estão sendo considerados desde os que fazem atendimento primário (como clínicas, unidades básicas de saúde), até estabelecimentos de maior complexidade, como os próprios hospitais.

Essas desigualdades suscitam uma série de preocupações. A primeira delas é que todas as regiões do Brasil estão enfrentando demandas relacionadas à Covid-19 e, como bem mostra o mapa 1, a estrutura com que cada região pode contar varia consideravelmente. A situação de sobrecarga dos trabalhadores em serviços de saúde deve estar agravada nas regiões Norte e Nordeste, onde o quantitativo de profissionais é menor frente à população que os demanda. Isso nos leva a uma questão urgente: como os profissionais nesses locais tem conseguido se revezar? É razoável supor que nas regiões como menos infraestrutura e menor quantitativo de profissionais, o revezamento seja severamente comprometido, o que aumenta o risco para esses profissionais, não apenas de adoecimento pela Covid-19, mas também por questões emocionais e a própria exaustão física.

A ampliação da jornada de trabalho dos profissionais de saúde estabelecida pela Medida Provisória 927 altera o regime de trabalho. O que antes contava com turnos de plantão de 24h de trabalho e 24h de descanso, agora passa a ser permitido turnos de 24h com tempo de descanso de apenas 12h. Essa medida deixa clara a sobrecarga do sistema de saúde frente à pandemia da Covid-19 e é preocupante pois aumenta o tempo de exposição dos trabalhadores a um ambiente de trabalho insalubre devido à falta de infraestrutura, insuficiência de profissionais e equipamentos de proteção individual. Além disso, essa situação não se resume apenas a esses profissionais, mas aumenta também o risco de contaminação do seu núcleo familiar e, em um efeito em cadeia, toda a sociedade.

Diante disso, é urgente que o Ministério Público do Trabalho, Sindicatos e outros órgãos de fiscalização estejam vigilantes na exigência de melhores condições de trabalho dos trabalhadores da saúde, tendo em vista que o Brasil figura entre os países com alta mortalidade por Covid-19 entre os trabalhadores do setor saúde, tendo pelo menos 98 óbitos apenas em profissionais de enfermagem.


Nota sobre o Gráfico 1: A categoria serviços de apoio abrange as ocupações de: auxiliar de lavanderia, auxiliar de farmácia de manipulação, almoxarife, agente funerário, arquivista, arquivista de documentos, copeiro, copeiro de hospital, cozinheiro de hospital, cozinheiro geral, coletor de resíduos sólidos de serviços de saúde, cuidador de idosos, faxineiro, técnico em nutrição e dietética. A categoria outros profissionais de saúde é formada por: agente comunitário de saúde, agente indígena de saúde, agente indígena de saneamento, auxiliar de banco de sangue, auxiliar de laboratório de análises clínicas, auxiliar técnico em laboratório de farmácia, auxiliar de radiologia, atendente de enfermagem, atendente de farmácia (balconista), biomédico, biólogo, cirurgião dentista (dentística), fonoaudiol, instrumentador cirúrgico, técnico em farmácia, técnico em laboratório de farmácia, técnico em patologia clínica, técnico em radiologia e imagenologia, tecnólogo em radiologia, terapeuta ocupacion, trabalhador de serviços de limpeza e conservação de áreas públicas, socorrista (exceto médicos e enfermeiros).

Karina Cardoso Meira – Epidemiologista, professora da Escola de Saúde e do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Luana Junqueira Dias Myrrha – Demógrafa, professora do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais (DDCA) e do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Jordana Cristina de Jesus – Demógrafa, professora do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais (DDCA) e do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Jonas Sâmi Albuquerque de Oliveira – Doutor em Enfermagem, professor do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Priscila de Souza Silva – Doutoranda em demografia do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

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