A atual polêmica em torno da questão do isolamento social como meio de reduzir a propagação da Covid-19, proposto e defendido por diversas entidades e especialistas no Brasil, a exemplo da nota conjunta divulgada no último dia 27 de março pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Academia Brasileira de Ciências (ABC), e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), dentre outras, em oposição ao chamamento do Presidente Jair Bolsonaro para que seja implementado o denominado “isolamento vertical”, passa por considerações a respeito da reabertura dos estabelecimentos de ensino e volta às aulas presenciais, dentre outras questões. Cabem, então, algumas reflexões baseadas em informações sobre os efeitos que poderiam advir do retorno à “normalidade” das aulas.
Os dados mais recentes e completos a respeito de alunos e professores da educação básica são do Censo Escolar de 2019, atualizados em 19 de março de 2020 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP. As informações referentes à educação superior não contemplam variáveis suficientes para análises a respeito de deslocamentos espaciais, motivo pelo qual a discussão aqui será restrita à educação básica. Não obstante, os volumes de pessoas que se deslocam espacialmente para estudo ou trabalho apreciados abaixo seriam ainda maiores, caso os números da educação superior fossem incluídos.
Ao nos debruçarmos sobre as informações específicas da Região Nordeste, contabilizamos quase 14 milhões de pessoas, dentre as quais se encontram crianças, jovens e adultos, que frequentavam presencialmente estabelecimentos de ensino e creches, em todas as etapas da educação básica, enquanto o regime de aulas estava ativo. Isso significa que todas essas pessoas circulavam pelo menos entre seus lares e suas escolas em seu trajeto diário para estudar, ainda que o deslocamento fosse a pé, além de outros espaços que, eventualmente, pudessem ser acessados nesse percurso, como uma lanchonete ou uma padaria.
Importante destacar que mais de 22% dessas pessoas, o que corresponde a aproximadamente 3 milhões de estudantes, utilizavam transporte público para ir à escola, que é um fator adicional no risco de contágio, uma vez que as pessoas normalmente se agregam nas paradas e terminais de ônibus ou estações de metrô e trem, e não têm como guardar a distância recomendada entre os passageiros dentro do meio de transporte. Adicione-se a esse volume os mais de 620 mil docentes da educação básica do Nordeste. Com a suspensão das aulas presenciais, pode-se considerar que esse número de pessoas deixará de circular pelo sistema de transporte, ao menos com fins de estudo, o que diminuirá a possibilidade de propagação da Covid-19.
Além das pessoas que usam transporte público dentro do município, há que se considerar, também, as pessoas que realizam o chamado deslocamento pendular para estudar ou para lecionar, ou seja, deslocam-se de seu município de residência para o município do estabelecimento de ensino onde estudam ou lecionam. Em 2019, mais de 630 mil estudantes (ou 5% deles e delas) realizaram o deslocamento pendular entre municípios para estudar, e quase 95 mil professores(as) (15% do total) também o fizeram para dar aulas. Cabe destacar que, entre os docentes, muitos se enquadram no grupo de risco em função da idade. É também importante refletir que, no caso do deslocamento entre municípios, as consequências relacionadas à possibilidade de aumentar a propagação do vírus são potencialmente piores que as do uso do sistema de transporte intramunicipal, uma vez que, normalmente, o trajeto da residência até a escola entre municípios diferentes será maior e levará mais tempo.
Esse fato, por si só já é um elemento de ampliação das possibilidades de risco relacionado à contaminação pelo vírus. Ademais, há que se considerar que, ao circular entre diferentes municípios, os quais têm autonomia para decidir a respeito das restrições de abertura e funcionamento de diversos setores (comércio, indústria, serviços), as pessoas podem colocar em contato as condições de contágio desses diferentes territórios. O resultado poderia, por exemplo, trazer consequências nefastas para aquele município que, em função do isolamento social planejado e executado, teve seu índice de contaminação ampliado em função da circulação de estudantes e docentes que, porventura, tenham vindo de outro município com menores restrições e maiores índices de contaminação.

Se, de forma geral, a proporção de estudantes e professores que se deslocam para o município do estabelecimento de ensino era expressivo, essa condição é mais intensa em espaços de maior aglomeração humana, como as regiões metropolitanas. A título de exemplo, na Região Metropolitana de Natal aproximadamente 9% dos alunos e 21% dos docentes praticam o movimento pendular intermunicipal para estudar e trabalhar, respectivamente. E esses números tendem a ser maiores em função da população e da conformação geográfica dos municípios da área em questão. Para que a heterogeneidade espacial possa ser mais bem apreciada, observe-se o caso da Região Metropolitana do Recife, que apresenta população e conurbação maior que em Natal, e onde 12% dos alunos e 33% dos docentes deslocam-se entre municípios durante o período de aulas.
Por fim, é importante lembrar que não se trata exclusivamente daqueles que participam das aulas presenciais, os alunos, professores e profissionais do serviço administrativo das escolas da educação básica que ficam mais expostos ao risco de contágio e que ampliam a possibilidade de propagação do referido vírus. Ao retornarem a seus lares, todos aqueles que coabitam com pessoas do grupo de risco diminuem a eficiência do isolamento parcial, pois aumentam as possibilidades de que algum descuido ou contato pessoal sem intenção provoque a transmissão da doença. Certamente, muitos dos alunos e dos professores dividem seus domicílios com idosos. Assim, eles e outras pessoas do grupo de risco sofreriam as consequências do retorno de tantas pessoas ao convívio social normal caso fosse estabelecido a volta às aulas. Parece que o mais razoável, neste momento, é aguardar até que os especialistas sobre o tema tragam novidades que possam embasar cientificamente qualquer alteração na recomendação de isolamento social adotado atualmente.
Wilson Fusco – Demógrafo, pesquisador na Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) e professor do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Confira essa e outras análises demográficas também no ONAS-Covid19 [Observatório do Nordeste para Análise Sociodemográfica da Covid-19] https://demografiaufrn.net/onas-covid19