Em análise anterior no ONAS, discutimos o impacto que poderia ter o fim do Auxílio Emergencial (AE) nos índices de pobreza do estado do Rio Grande do Norte. Cerca de 27% da população potiguar pode ficar abaixo da linha de pobreza sem o AE, se consideramos o corte de pobreza definido pelo Banco Mundial (que é de 5,5 dólares per capita domiciliar ao dia). Desse contingente, uma parcela importante (um terço) estaria abaixo da linha da pobreza extrema, de 1,9 dólares per capita domiciliar ao dia. Os resultados apresentados nesta análise do ONAS publicada no dia 23.12.2020 foram divulgados em reportagem de jornal de grande circulação no RN na sua edição de domingo (dia 27.12) e analisamos alguns dos comentários relacionados à publicação da matéria nas redes sociais. Entre as reações dos leitores, boa parte se referia ao número excessivo de filhos que teria a população que recebe o AE e também aos “relatos” de casos em que as pessoas que recebem benefícios não querem trabalhar. Discutiremos esses dois pontos nessa nota.
O primeiro ponto se refere ao número de filhos. A taxa de fecundidade total, que mede o número médio de filhos por mulher em um determinado período, no estado do Rio Grande do Norte vem caindo sistematicamente acompanhando uma tendência mundial e nacional. Entre 2000 e 2016 a taxa caiu de 2,63 filhos por mulher para 1,72. Considera-se que a taxa mínima para repor uma população seja de 2,1 filhos por mulher, ou seja, valores abaixo disso não conseguiriam manter uma população com seu mesmo quantitativo ao longo do tempo. Significa dizer que o RN já está abaixo do nível de reposição da população e, se não considerarmos os movimentos migratórios, com essa taxa o estado tende a estabilizar seu crescimento populacional e logo depois decrescer (veja explicação).

Considerando os dados da pesquisa PNAD-Covid relativas ao mês de outubro para o Rio Grande do Norte, 84% dos domicílios que recebiam o Auxílio Emergencial naquele mês tinham até 2 crianças de até 14 anos. Reflexo da queda no número médio de filhos por mulher já há alguns anos é, portanto, que o número de crianças vivendo em domicílios também caiu de modo generalizado, mesmo entre a população mais pobre. Claro que os relatos pessoais sempre identificam casos de uma família com muitas crianças em situação de pobreza, mas considerando os dados agregados da população, essas situações são cada vez mais raras. São diversos os estudos que analisaram os efeitos de programas de transferência de renda como o Bolsa Família, por exemplo, sobre o número de filhos. O resumo é que esses programas de transferência de renda não levam à um aumento da natalidade. Isso não ocorre aqui e em nenhum país que tenha desenvolvido políticas explícitas para aumentar a fecundidade, como é o caso de alguns países europeus que já sofrem uma redução da população por conta das suas taxas de fecundidade abaixo da reposição há muito mais tempo.
O segundo aspecto que analisaremos aqui é a percepção de que políticas de transferência de renda induzem as pessoas a se acomodarem. As taxas de desemprego apresentadas em nossa análise anterior para o Rio Grande do Norte subiram ao longo desses meses do ano. Em maio o desemprego estava na casa dos 12% e em novembro chegou a 17%, segundo os dados da Pnad-Covid (IBGE). Nesse mesmo período, a proporção de pessoas recebendo Auxílio Emergencial se manteve praticamente estável, no patamar de um pouco mais de 50% dos domicílios. As taxas de desemprego são calculadas considerando a população em idade ativa e que estão procurando emprego. Pessoas com mais de 14 anos que declaram que não estavam procurando emprego (estudantes, aposentados, donas de casa) não são consideradas como expostas à força de trabalho e, portanto, não são consideradas para o calculo do desemprego. Pessoas que por qualquer outro motivo e não estejam procurando emprego não são consideradas para medir o desemprego. Dito isso, se o Auxílio Emergencial chega a mais da metade dos domicílios potiguares, mas as taxas de desemprego continuaram subindo, não seria plausível achar que há uma acomodação das pessoas por conta do recebimento do benefício. Se isso fosse verdade, seria de se esperar que as taxas de desemprego caíssem com a implementação do AE.
Entre as pessoas que vivem em domicílios que recebem o Auxilio Emergencial, cerca de 445 mil declararam não estar procurando emprego, mas que desejariam tê-lo feito na semana de referência da Pnad-Covid em outubro. Analisando a declaração dos motivos para não terem procurado emprego, cerca de 150 mil pessoas disseram que não procuraram emprego por conta do distanciamento social, mas gostariam de ter buscado. De certo modo, essa foi uma das justificativas da criação do AE, ou seja, devido às restrições impostas pelo distanciamento social necessário para conter a pandemia, o suporte financeiro serviria para evitar que as pessoas saíssem às ruas pela queda dos seus rendimentos. Sem o AE a partir de janeiro, é de se supor que essa parcela da população volte a procurar emprego. Então, com a adição dessas pessoas na procura por emprego, as taxas de desemprego subiriam para 28%. Quase 1/3 da população em idade ativa estaria a procura de postos de trabalho. Se adicionarmos a esse grupo, aquelas pessoas que deixaram de procurar emprego por desalento (por terem desistido de tentar devido às dificuldades de encontrar empregos) o desemprego no RN seria da ordem de 36%. E isso se refere apenas àqueles que declaram residir em domicílios que recebem o Auxílio Emergencial que, em outubro, já era mais baixo do que o calor original de 600 reais.
Com base nessa breve análise, pode-se dizer que a “solução” para o fim da pobreza é muito mais complexo do que reduzir o número de filhos que as pessoas mais pobre tem (até porque essas taxas já são baixas). Tampouco, achar que o benefícios de transferência de renda como o Auxílio Emergencial sejam motivadores para a preguiça e acomodação da população parece fazer sentido. Esses dois pontos são relevantes de serem analisados, pois são aspectos centrais da argumentação de Thomas Malthus, no final do século 18. Para Malthus, deveria-se controlar a natalidade e não poderiam haver políticas de alívio à pobreza. Só assim, haveria progresso e desenvolvimento. Parece que passados mais de 200 anos desde sua proposição, ainda restam fragmentos dessas ideias e é difícil muda-la, mesmo que as evidencias nos mostrem o contrário.
Ricardo Ojima – Demógrafo, professor do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais (DDCA) e do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Confira essa e outras análises demográficas também no ONAS-Covid19 [Observatório do Nordeste para Análise Sociodemográfica da Covid-19] https://demografiaufrn.net/onas-covid19/arquivo