O indicador de densidade demográfica tem sido frequentemente usado para justificar ou explicar um baixo potencial de contaminação da Covid-19. É sedutor pensar que se temos um número baixo de habitantes por quilometro quadrado, as pessoas estariam mais distantes umas das outras e, com isso, diminuiria a chance de contaminação. Se essa relação é verdadeira, como explicar o caso do Amazonas? Segundo dados do Ministério da Saúde (atualizados em 13.04, às 17h50), o Brasil tinha 23.430 casos confirmados de Covid-19 e 1.328 óbitos. A região Norte participava com 8,7% (2.028 casos confirmados), sendo que 54% desses casos se concentram no Estado do Amazonas. Mas o estado do Amazonas está em quarto lugar no número de casos confirmados, com 1.275 casos, atrás apenas de São Paulo (8.895), Rio de Janeiro (23.231) e Ceará (1.800).

O presidente da república declarou em entrevista que a densidade demográfica baixa é um fator que nos protege da disseminação do vírus. Segundo ele,

“Você não pode comparar o Brasil com a Itália. Você sabe quantos habitantes temos por quilômetro quadrado na Itália? São 200 habitantes por quilômetro quadrado. No Brasil, são 24 (habitantes por km²), há uma diferença enorme entre esses países.”

Mas como explicar que o estado do Amazonas seja a quarta Unidade da Federação com mais casos e a maior incidência (303 casos a cada 1 milhão de habitantes) se ele é o penúltimo em termos da sua densidade demográfica? Segundo as estimativas do IBGE, a densidade demográfica do Amazonas em 2019 seria de 2,6 habitantes por km2. Ou seja, uma densidade muito, mas muito mais baixa do que a encontrada na Itália ou no Brasil como um todo.

Quando consideramos a distribuição da população do estado do Amazonas, verificamos que mais da metade da população do estado se concentra em um único município. No caso, a capital, Manaus. Em relação à Covid-19, a capital do Amazonas concentra quase 87% dos casos confirmados no estado. O caso de Manaus tem chamado a atenção devido às dificuldades que vem enfrentando em relação à sua capacidade de atendimento tanto por equipamentos como de profissionais de saúde. Além disso, segundo a classificação realizada pelo Ministério da Saúde, a capital do Amazonas figura entre as 12 capitais em situação de emergência, pois se encontram muito acima da média nacional de incidência (casos confirmados sobre o total da população) da Covid-19. Entre as 12 capitais, três delas pertencem à região Norte. Manaus, com 482 casos por milhão de habitantes, juntamente com Macapá e Boa Vista (com 391 e 175 casos por milhão de habitantes, respectivamente).

A densidade demográfica de Manaus é da ordem de 190 habitantes por km2. Se aproximando muito da densidade demográfica da Itália como um todo. Como podemos perceber, analisar o recorte espacial onde efetivamente vivem as pessoas é mais relevante do que considerar a área total do recorte político administrativo como um todo, pois muda muito a nossa leitura dos dados se comparamos a densidade do Estado do Amazonas (2,6 hab/km2) com a da sua capital. Afinal, se é a capital o local de maior ocorrência de casos, qual o sentido de considerar a área total do estado e sua densidade?

A densidade do Amazonas é muito baixa devido ao fato de que grande parte do seu território não é habitado e a sua área total é muito grande (1,5 milhões de km2). Assim, quando distribuímos a população nessa área gigantesca, temos um indicador de densidade que pode mascarar a informação mais importante: o quanto as pessoas estão próximas umas das outras e, por exemplo, avaliar o potencial de contágio do novo coronavírus. Mas podemos especificar um pouco mais essa relação de proximidade das pessoas. Manaus é um município com grande extensão territorial e quase toda a população vive na sua área urbana (99%). A área urbanizada de Manaus corresponde a cerca de 430 km2 (3% da área total do município). Assim, a densidade demográfica que melhor representaria a proximidade entre as pessoas para o potencial contágio no município de Manaus seria a densidade demográfica urbana e não a densidade demográfica total do município, uma vez que poucas pessoas residem fora da área urbanizada. Considerando essa distribuição, a densidade demográfica urbana de Manaus chega a mais de 5 mil habitantes por km2!

Figura 1 | À esquerda: densidade de 20 habitantes por km2 dispersos na área total. Direita: mesmos 20 hab/km2 concentrados em uma pequena parcela da área total.

E isso vale para qualquer análise que considere a densidade demográfica como um indicador relevante. Vejamos: quando pensamos em uma densidade demográfica de 20 habitantes por km2, por exemplo, logo pensamos no esquema à esquerda da Figura 1. Mas esquecemos que esse mesmo valor de densidade demográfica pode estar distribuído como no esquema à direita da Figura 1. Ou seja, os mesmos 20 habitantes por km2 podem estar distribuídos de modo disperso e equidistantes em toda essa área (o que é pouco provável no mundo real), mas também podem estar todos muito aglomerados em uma pequena parte desse mesmo km2 (o que é o mais comum, sobretudo pela concentração de pessoas em áreas urbanas).

Portanto, o uso da densidade demográfica como indicador relevante para se pensar o potencial de contágio deve levar em consideração o recorte territorial daquilo que pretendemos analisar. Ou seja, o quanto as pessoas vivem próximas umas às outras. No Brasil e no mundo as pessoas vivem concentradas nas áreas urbanas. Nesse sentido, seria melhor utilizar como recorte espacial para pensar o contágio a densidade demográfica urbana. Nessa comparação, Manaus tem uma população muito mais adensada do que a província de Bergamo, na Itália, que foi um dos locais mais afetados pelos casos de Covid-19 na Europa. Lá a densidade é de 3 mil habitantes por km2.

Enfim, não é contraditório que o estado do Amazonas tenha uma densidade muito baixa e ao mesmo tempo tenha um elevado número de casos. Não estamos aqui afirmando que é a densidade demográfica da população urbana de Manaus ou do Amazonas o que explica o grande número de infecções pela Covid-19, mas fica evidente que é equivocado pressupor que a contaminação será baixa por conta do uso indevido do indicador de densidade. Ou seja, a densidade demográfica pode ser um dos elementos que contribuem com a disseminação da doença, mas precisa ser pensado de acordo com o recorte territorial adequado para não causar distorções e um mal uso da informação.

Ricardo Ojima – Demógrafo, professor do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais (DDCA) e do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Confira essa e outras análises demográficas também no ONAS-Covid19 [Observatório do Nordeste para Análise Sociodemográfica da Covid-19] https://demografiaufrn.net/onas-covid19

3 respostas para “O que nos diz a densidade demográfica para analisar a covid-19 no estado do Amazonas?”.

  1. Avatar de MARIA NILCE DE ARAUJO MARQUES
    MARIA NILCE DE ARAUJO MARQUES

    Muito esclarecedor!!!
    Estava tentando entender a situação de Manaus. Corretíssimo quando considera a area territorial ocupada e nao o território como um todo para calcular a densidade.

    Curtido por 1 pessoa

  2. Avatar de Teddy OCross
    Teddy OCross

    Talvez seria importante considerar que nas áreas com baixa densidade demografica a infraestrutura é precária,. Os transportes por exemplo, estão sempre cheios. Os centros comerciais são poucos. A distância entre a moradia dos habitantes de pouco interessa se eles periodicamente se dirigem enlatados em um barco ou ônibus para o único centro urbano próximo para fazer compras ou para o lazer

    Curtir

    1. Avatar de ppgdem

      Olá Teddy. De fato, há diversas variáveis que precisam ser consideradas. O que a nossa análise tentou alertar aqui foi a importância de se tomar o devido cuidado para interpretar o indicador de densidade demográfica, pois ele foi usado de modo genérico e deu uma falsa impressão de que a baixa densidade de algumas regiões poderia “proteger” as pessoas. Obrigado pelo seu comentário!

      Curtir

Deixar mensagem para ppgdem Cancelar resposta

Siga nossas redes

PPGDem

Este é o blog da Demografia UFRN. Aqui temos divulgação científica, análises demográficas, projetos de pesquisa e outros assuntos do programa de pós-graduação em demografia da UFRN. Siga e fique por dentro.

ABEP (8) Aluno Especial (3) Capes (3) CNPq (3) Covid-19 (18) demografia (176) desigualdade de gênero (3) divulgação científica (84) doutorado (3) editorial (14) Egressos do PPGDem (3) envelhecimento (3) extensão universitária (4) fecundidade (4) Feminicidio (4) mercado de trabalho (4) migração (8) mortalidade (4) natalidade (4) ONAS (18) ONAS-Covid19 (14) podcast (64) população (55) população e meio ambiente (3) PPGDem (160) Processo Seletivo (10) Produtividade em Pesquisa (3) pós-graduação (3) QD (4) quartas demográficas (5) rasgai (6) rasgaí (61) semiárido (4) Suicídio (3) sustentabilidade (3) trabalho doméstico (4) ufrn (6) urbanização (3) violência (3) violência contra a mulher (3)