Estamos sendo informados a cada momento sobre a pandemia da Covid-19. A imprensa tem feito o seu papel de apurar e divulgar, apresentando a diversidade de realidades e de enfrentamento à pandemia. Entretanto, na maioria das vezes, acompanha-se a evolução da doença com foco nas capitais e regiões metropolitanas. Há um relativo silêncio sobre o impacto sobre algumas regiões que já sofrem com ausências de serviços. Pouco se discute sobre o que se passa nas demais regiões do país. A ausência de notícias sobre localidades no interior não significa que a ocorrência de casos seja baixa, ou que a situação não seja preocupante. Ao mesmo tempo, pouco se discute sobre quais são as particularidades vividas nestes lugares, como a maior dificuldade em acessar os testes para o novo coronavírus (SARS-Cov-2) ou informações sobre a capacidade de atendimento da rede hospitalar.
É fato que os municípios no interior abrigam uma população considerável no Brasil. Somente na região Nordeste, 37 milhões de pessoas viviam fora das capitais ou de suas regiões metropolitanas, o que representa cerca de 65% da população da região, segundo as estimativas do IBGE para 2019. Diante desse cenário, questionamos: quais particularidades populacionais se apresentam como desafios ao enfrentamento da disseminação da Covid-19 nos municípios do interior nordestino?
Se inicialmente os casos da Covid-19 se concentravam nas capitais, já é possível perceber uma transmissão da Covid-19 em direção aos municípios localizados no interior. Assim, somente medidas conjuntas de isolamento social, acompanhamento da entrada de indivíduos de outras localidades ou barreira sanitária que diminua o fluxo intermunicipal poderão postergar a proliferação de casos e do contágio nessa direção. Sobre este ponto é relevante que os municípios se atentem às principais formas de chegada de indivíduos, como visitas de familiares, caminhoneiros ou médicos que atendem em hospitais e UPA em mais de um município (haja vista a ausência de médicos em diversos municípios do interior).
Se nas capitais a entrada da Covid-19 se deu inicialmente através dos voos internacionais infectando primeiramente as camadas socioeconômicas de mais alta renda, é provável que nos municípios do interior o contágio e a proliferação possa acontecer pelas agências bancárias e casas lotéricas. Dessa vez, passando a atingir as populações de menor poder aquisitivo. Isto porque no final e início de cada mês, época de pagamento de salário, aposentadoria, pensão, Bolsa Família, entre outros benefícios sociais, formam-se gigantescas filas e aglomerações de pessoas nos bancos e lotéricas. Sobretudo no caso das aposentadorias e o benefício de prestação continuada é grande o contingente de idosos que se deslocam da zona rural ou municípios menores para os maiores devido a ausência de agências bancárias. Esta é uma forma de mobilidade que potencializa o contágio, já que o porte dessas agências inviabiliza o distanciamento social recomendado de 1 até 2 metros.
Outra preocupação diz respeito à subnotificação de casos devido à falta de testes, realizados notadamente nas capitais e regiões metropolitanas foco da disseminação da Covid-19 no país, como é o caso dos municípios de São Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza na região Nordeste. Ademais, quando os exames são realizados nos municípios do interior, é longa a espera para receber o resultado, pois grande parte dos laboratórios estão localizados nas capitais.
Caso não sejam tomadas as medidas de distanciamento social e redução de deslocamentos das pessoas entre municípios, o tratamento da população residente no interior nordestino torna-se preocupante pois, em geral, são desprovidas de leitos de internação. Para realizar os atendimentos/consultas normalmente já se deslocam para os municípios polos da região que, por sua vez, não suportam a demanda local. Em muitos casos não possuem leitos de UTIs. No Nordeste, o número de leitos por mil habitantes é de 1,7 em municípios do interior e 2,5 nas capitais e suas respectivas RMs, demonstrando a desigualdade da rede hospitalar dentro da região. Em alguns casos, como Sergipe, o número de leitos disponíveis na RM chega a ser 3 vezes maior quando comparado com os municípios do interior. Essa diferença é observada em todos os estados da região Nordeste, sendo que tais disparidades são mais intensas no Piauí, Pernambuco, Alagoas e Maranhão, além do estado do Sergipe. Cabe salientar que esta análise não envolve os leitos de Unidades de Tratamento Intensivo (UTI), que se encontram fundamentalmente nas capitais.
Portanto, o foco das ações neste momento deve se centrar na prevenção da disseminação. No caso dos municípios do interior do Nordeste, isto significa acompanhar as possíveis formas de entrada da Covid-19 através do deslocamento de pessoas de lugares com casos diagnosticados, como é o caso das capitais. Vale tomar precauções também em relação aos visitantes, familiares, médicos, caminhoneiros ou outras pessoas que cheguem nesses pequenos municípios. Além disso, é fundamental evitar ou arrefecer a disseminação interna diminuindo o tempo de exposição das pessoas em filas de bancos e lotéricas que guardam um grande potencial de contágio e irradiação para os municípios vizinhos.
As precauções são essenciais, principalmente quando se considera que a capacidade de tratamento nos municípios do interior nordestino é menor quando comparado às RMs, podendo ocorrer que os seus leitos hospitalares fiquem exauridos em um menor espaço de tempo caso não se tomem as medidas preventivas recomendadas. Nesse contexto, o poder público nas três esferas de poder (União, Estados e Municípios) precisa estar preparados e articulados para o que possa vir acontecer e construir hospitais temporários/de campanha, reequipar hospitais fechados e ampliar o monitoramento através de postos de saúde e Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Enfim, preparar também as regiões mais carentes do país em termos de serviços essenciais.
Carla Craice da Silva – Demógrafa, professora do Instituto de Humanidades e Letras Malês (IHLM) da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB)
Silvana Nunes de Queiroz – Demógrafa, professora do Departamento de Economia da Universidade Regional do Cariri (URCA) e do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Confira essa e outras análises demográficas também no ONAS-Covid19 [Observatório do Nordeste para Análise Sociodemográfica da Covid-19] https://demografiaufrn.net/onas-covid19