Por Andrelino da Silva
Voltar ao nosso passado poderia ser considerado um movimento migratório. Talvez eu tivesse seis anos, não era mais que isso. O ano era 1987, quando minha pequena comunidade, fincada no semiárido potiguar, me proporcionou ver uma cena jamais esquecida e pouco entendida na época. Em uma pequena radiola, um disco tocava a mesma música constantemente, enquanto homens e mulheres choravam copiosamente abraçados. Foi a primeira e única vez que vi o meu pai chorar, aquele homem rústico, um sertanejo forte, como bem descreveu Euclides da Cunha. Porém, nem mesmo aquele espesso bigode que usava, parecendo uma mistura de Nietzsche com Leminski, e que representava o nível de sua moral e masculinidade, o impediu de chorar.
Fiquei abismado com aquela cena e sem saber do que se tratava, apenas sabia que quando choramos é porque algo dói e, em meu pai e em toda aquela gente, algo doía muito. Era uma dor impossível de esconder: um amigo estava partindo, indo embora, migrando. Só pude perceber isso porque uma parte da música falava assim: “minha vida está sem graça por isso que eu tenho que ir, adeus, minha namorada, adeus, meu lindo lugar.” Deduzi ser uma partida, na verdade, uma triste partida, tão triste quanto a que o Patativa poetizou.
Minha comunidade, a pequena Cachoeira do Sapo, era um lugar com pouco mais de 500 pessoas na época. Todos ali se conheciam e boa parte era parente. O desenvolvimento não chegava àquele lugar. Vivíamos da agricultura, da caça e do trabalho alugado. Nosso contato com a modernidade se resumia aos rádios e a uma televisão instalada no mercado público da cidade, que era ligada das 18h às 23h. As cartas, naquela comunidade com alta taxa de analfabetismo, era o único recurso possível para nos comunicarmos com o exterior. O lugar era como a maioria dos lugares do semiárido nordestino: seco, quente, empoeirado, principalmente, em tempos de longa estiagem. O calor escaldante dessas terras sertanejas pode, facilmente, ser comparado ao inferno de Alighieri. É o mesmo tipo de lugar que gestou figuras como Lampião e Conselheiro.

Apesar da dificuldade da terra bruta, ali se formavam pessoas de valor. Darwin, na teoria da evolução das espécies, afirma que sobrevive o ser que se adaptar melhor. Assim é o homem do Sertão, um homem adaptado ao meio, um homem com uma resistência hercúlea. Acredito que o convívio com a vegetação da caatinga tenha até nos tornados parecidos com a jurema preta, planta que sobrevive aos castigos da seca sempre forte e resoluta. Pois, quando a estiagem castiga, ela perde todas as folhas, ficando apenas seu tronco contorcido e algumas dezenas de galhos se descascando pelo sol e o vento e que, de longe, parece uma figura monstruosa saída de um conto de Allan Poe. Porém, quando cai a primeira chuva, ela se reveste com milhares de flores brancas, mostrando que está viva e pronta para um novo ciclo. Somos muito parecidos, o sol também nos retorce, queima, nos descasca e nos impõe a perda da estabilidade física, muitas vezes, nos deixando cadavéricos. No entanto, aprendemos a resistir e procurar melhoria feito a Asa Branca, magnificamente imortalizada por Luiz Gonzaga, que voa a outros lugares quando a seca bate. Com ela, também aprendemos a migrar, criando novos enredos na vida daqueles que vivem constantemente uma luta desigual contra os fenômenos da natureza.
Naquele dia, meu pai chegou em casa triste e me disse que nosso goleiro estava indo embora para São Paulo, mas eu não tinha noção da distância e nem sabia o que significava aquilo. “A viagem demora três dias e três noites”, continuou ele. Foi aí que imaginei que era um lugar muito distante, tipo o asteroide B612, do Pequeno Príncipe. Aquela convidativa cidade de asfalto e concreto armado, apesar de ser a esperança de muitos, poderia ser também o calvário para um homem sem letra, como bem nos mostra um verso da canção do Belchior “sem dinheiro no bolso, sem parente importante e vindo do interior”. Tudo isso é um oceano de incerteza. Mas, como dizia Dom Helder, “é graça divina começar bem, graça maior persistir na caminhada certa, mas graça das graças é não desistir nunca”.
Talvez o poeta Lino Sapo tenha percebido esse homem quando diz:
“Quem nasce pelo sertão
Pouco conta com a sorte
Pois resiste às intempéries
Que só o deixam mais forte
Não há dor que não extinga
Imitando a caatinga
Dá sacolejo na morte”
Esse sertanejo, que faz jus ao poema, também é um homem que não foge do trabalho duro em nenhum lugar que esteja. Foi assim por toda nossa existência. Esse emigrante, por sua capacidade de trabalho, ao encontrar um espaço na região de destino, tende sempre a lograr êxito. George Martine afirma que “a situação da população migrante melhora sensivelmente à medida que aumenta o seu tempo de residência no lugar de destino”. Essa constatação, embora compreendida indiretamente por parte de quem se vai observando os que partiram e melhoraram de vida, deve ter ampliado as esperanças de muitos e pode ter sido uma das principais causas que levou tantos nordestinos a migrarem. Fusco e Ojima mostram que, no ano de 1970, 11,7% dos naturais do Nordeste viviam fora de sua região de nascimento. Nosso goleiro seria mais um a fazer parte dessa estatística. Homem simples, honesto e trabalhador, defendia com orgulho a camisa titular do nosso time. Time esse, que talvez fosse o maior patrimônio da comunidade. Era popularmente conhecido por “preá”, não sei se por ser ligeiro debaixo das traves ou por ser um bom caçador desses roedores que era a fonte principal de proteína de nossa gente.
Ele não conhecia a teoria Malthusiana, mas sabia que, após a morte do pai, herdava a responsabilidade de gerir a casa e trazer alimento para sua mãe e seus irmãos menores. No entanto, trabalhando de meeiro nas terras alheias, não conseguiria produzir alimentos na proporção suficiente aos que deveriam ser alimentados. Na obra, de quanta terra precisa um homem? Em Tolstoi, vemos um homem loucamente morrendo para ter a maior quantidade de terra possível; aqui, vemos o contrário, um homem quase louco por não ter um pedaço de terra possível para produzir o de viver. Pois o monopólio da terra, somado ao solo desgastado e à falta de chuva regular e ainda atrelado à falta de uma renda mensal tornava sua vida naquele lugar inviável.
Os programas sociais tão comuns aos dias de hoje, naquele tempo, nem sequer foram pensados. Pôr ordem ao caos significava partir. Estava sendo expulso por força maior de sua terra, bem como nos mostra a teoria dos fatores de expulsão de Paul Singer. Restava-lhe apenas migrar em busca de um trabalho estável, rumo à industrializada e distante cidade grande. Ravenstein, em sua quinta teoria da migração, já dizia que “as pessoas que migram longa distância geralmente se dirigem aos grandes centros comerciais ou industriais”. Era esse o caso. Nessa moderna cidade, poderia, com sorte, arrumar um emprego na construção civil.
Passei anos de minha vida buscando saber que música era aquela, quem escreveu, quem cantava. A canção fazia parte de um momento incrível da minha história. Por diversas vezes, procurei no Google, colocando a parte de que me lembrava, mas todas as vezes foram sem êxito. Falei com as pessoas que estavam no dia, mas elas não sabiam dizer quem a cantava, lembravam que se tocou essa música, mas não sabiam dizer de quem era. Minha busca parecia que não teria sucesso, até que um dia me falaram de um homem que morava em uma cidade vizinha que conhecia muito de músicas antigas, era um verdadeiro amante do rádio. Quando mencionei a parte da música que lembrava, ele automaticamente disse: Ivan Peter. Aquilo me encheu de alegria. Agradeci-lhe bastante, corri para buscar na internet e acabei com 29 anos de procura. Encontrei, baixei e escutei como quem saboreia o elixir da juventude. O nome da música era Minha Partida, lançada no álbum “O mensageiro do amor”, no ano de 1978, por Ivan Peter, paraibano da cidade de Sousa.
Shakespeare dizia que “a paixão aumenta em função dos obstáculos que se lhe opõem”. Essa frase, sem dúvida, resume minha vida acadêmica e minha luta diária para permanecer vivo. Eu sempre fui apaixonado pelo assunto da migração e tive o prazer de ter esse sentimento potencializado pelo Programa de pós-graduação em demografia da UFRN. Ali percebi o quanto essa temática é amada, explorada, dissecada e aprofundada por grandes professores. Foi então que quis trazer essa história a público, queria falar da migração, tratando de coisas subjetivas como dor e saudade. Dor essa que não senti no dia, mas que compreendi que existiu pela quantidade de lágrimas, abraços e sussurros. Foi um momento triste, porém lindo, diria até que foi poético. Ali havia verdade, lealdade, fraternidade e amizade de quem partia e de quem ficava. Abraham Lincoln afirmava que “a melhor parte da vida de uma pessoa está nas suas amizades”. Não tenho como discordar pelo que vi, senti e vivi.
Na área da história, há um campo chamado de micro-história, idealizado por Ginzburg e Levi, que visa analisar os anônimos, personagens não conhecidos, mas que fazem parte da história. Talvez todo esse relato poderia ser microdemografia, ou não seja nada, apenas mais um relato comum. No entanto, entender o todo pela parte me parece bastante envolvente. Fernando Pessoa diz que “para viajar, basta existir”. Estou em viagem às minhas reminiscências, agora com um entendimento melhor. Hoje consigo ver que esse movimento da migração é um campo muito vasto a ser explorado e os professores Ojima, Fusco e Silvana têm me garantido, por suas vastas produções, um mergulho nesse universo, o de migrar dentro do meu próprio eu, partindo desse eu do presente para o eu do passado e, assim, construir toda essa narrativa sobre migração. Sem dúvida, essa viagem é muito mais poética e literária do que científica, ou não.
“Gosto daquele que sonha o impossível”, assim dizia Goethe. Hoje percebo que aquele homem também sonhava o impossível ao partir em busca de uma vida melhor. Mas como dizia Jung, “qualquer árvore que queira tocar os céus precisa ter raízes profundas a ponto de tocar os infernos”. E ele era como a jurema preta da caatinga nordestina. E talvez não quisesse permanecer naquele universo e ser mais um Severino personagem do João Cabral de Melo Neto, muito menos um Fabiano de Vidas secas. Pensando assim, foram muitos de nós que partiram partidos de dor, por sua gente que deixava junto a sua terra amada, preferindo enfrentar a cidade grande a ter suas vidas definhadas e representadas em mais um romance sobre seca.
A migração nordestina causou mudanças incomparáveis na terra e na sua gente. As mudanças subjetivas me chamam atenção. Dizem que a dor da saudade é a mais doída, por isso, não teríamos como calcular esse subproduto causado por esse fenômeno da migração. Os poetas até já poetizam bastante, mas ninguém consegue calcular, descrever ou equacionar a dor que vai e a que fica. Kant dizia que “liberdade é fazer o que não se quer”; seriam eles felizes ao cavalgar nessa liberdade, já que partiram obrigados pela situação? Do que adianta buscar o céu, vivendo um inferno? O mitólogo Joseph Campbell disse que “o pior padecimento do inferno, a julgar pelo que sabemos dele, é a ausência do bem-amado”. Essa afirmação pode ser, talvez, a que mais se aproxima do que vive um emigrante em um mundo totalmente diferente de tudo que ama. Um inferno. Essa não seria a única conclusão possível, pois existe quem encontre o paraíso. O fato é que, independentemente do que se vai encontrar ao migrar, a certeza é que a dor também irá na mala.

Andrelino da Silva é discente do mestrado em demografia da UFRN. Poeta, Lino Sapo (como é conhecido pelo seu nome artístico) é natural de Cachoeira do Sapo/Riachuelo/RN. Em sua carreira poética já produziu 35 cordéis, nove músicas, dois livros lançados e uma coletânea de cordel com 20 títulos. Em 2019 construiu na cidade de Pedra Preta, o recanto da poesia e nele o portal da poesia, um arco estilo romano que tem em suas colunas mais de 200 poesias engarrafadas, lacradas e concretadas na base do portal, de 153 poetas de 17 estados do Brasil.
REFERÊNCIAS
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